Projecto de Lei N.º 80/XIII/1ª

Articulação do Ministério da Saúde e dos estabelecimentos e serviços do Serviço Nacional de Saúde (SNS) com as instituições particulares de solidariedade social

Revoga o Decreto-lei nº 138/2013, de 9 de outubro que «define as formas de articulação do Ministério da Saúde e os estabelecimentos e serviços do Serviço Nacional de Saúde (SNS) com as instituições particulares de solidariedade social, bem como estabelece o regime de devolução às Misericórdias dos hospitais objeto das medidas previstas nos Decretos-Leis n.ºs 704/74, de 7 de dezembro, e 618/75, de 11 de novembro, atualmente geridos por estabelecimentos ou serviços do SNS»

O Governo PSD/CDS, no decurso do seu mandato, intentou um plano e concretizou medidas tendentes a proceder à reorganização da rede hospitalar. Uma reorganização da rede hospitalar que não visou a melhoria da prestação de cuidados hospitalares aos utentes, mas assentou apenas numa matriz economicista, ou seja, reduzir e concentrar serviços, para reduzir despesa. Estes foram, aliás, os pressupostos da criação do Grupo de Trabalho para a reorganização da rede hospitalar.

O relatório apresentado por este Grupo de Trabalho, datado de Novembro de 2011, apontou como proposta, e passa-se a citar: “Aprofundar uma parceria estratégica com o Sector Social da Saúde, em especial com a União das Misericórdias com vista à devolução de unidades aos seus proprietários e contratualização de serviços aos mesmos, libertando o SNS de custos fixos e assentando os novos acordos em produção variável”. Justificam tal proposta pelo facto das Misericórdias portuguesas prestarem cuidados à população, referindo que são “detentoras de um vasto parque onde funcionam várias unidades de saúde exploradas pelo SNS. Da análise de várias unidades ao longo do País constata-se da possibilidade de se proceder à sua transformação funcional em Centros de Alta Resolução ou Unidades de Cuidados Continuados”.
No seguimento deste relatório, e pese embora ter sido afirmado pelo então executivo que se tratava apenas de um estudo, o Governo anunciou e, posteriormente concretizou um plano de devolução às Misericórdias os hospitais do Serviço Nacional de Saúde (SNS) cujo edificado é da sua propriedade. Inicialmente foram sinalizados 15 hospitais, entre os quais, o Hospital de Santo António no Porto, do Montijo, de Serpa, da Régua, da Póvoa de Varzim, da Vila do Conde, de Barcelos, de Vila Nova de Famalicão, de Valongo, de Cantanhede, de Fafe e da Anadia. Posteriormente, foram definidas três fases. Na 1.ª fase estiveram envolvidos os hospitais de Anadia, Fafe e Serpa, tendo a devolução ocorrido no final do ano de 2014. As restantes fases (2.ª e 3ª) ocorrerão, tal como está explanado no documento Compromisso de Cooperação para o Setor Social e Solidário – Protocolo para o biénio 2015-2016, da autoria do Ministério da Solidariedade, Emprego e Segurança Social, do seguinte modo: “2.ª fase - Hospital de Santo Tirso Hospital de São João da Madeira, Hospital do Fundão; 3.ª Fase: 3 Unidades Hospitalares de dimensão semelhante às da segunda fase, predominantemente na Região Centro.”

A publicação do Decreto-Lei nº138/2013, de 9 de outubro para além de definir o processo de transferência dos hospitais sob gestão pública para as Misericórdias, prevê, no que às formas de articulação entre o Estado e as IPSS diz respeito, três modalidades, a saber: Acordos de Gestão, Acordos de Cooperação e Convenções.

Este diploma ao contemplar o acordo de gestão, abriu caminho para que qualquer serviço do Serviço Nacional de Saúde, quer seja dos cuidados primários, quer seja dos cuidados hospitalares, passe a ser gerido pelas IPSS havendo assim uma transferência na prestação de cuidados à população do setor público para o setor privado, mesmo sendo de cariz social. Ora, esta modalidade configura-se uma “espécie” de parceria público-privada, constituindo-se assim mais uma privatização do SNS.

No que à devolução dos hospitais do SNS às Misericórdias diz respeito, o diploma refere que os “hospitais (…) [que] foram integrados no setor público e são atualmente geridos por estabelecimentos ou serviços do SNS, podem ser devolvidos às misericórdias mediante a celebração de acordos de cooperação”, sendo que este processo de devolução constitui “a reversão da posse com cessão da exploração dos estabelecimentos”, ou seja, os hospitais atualmente integrados e geridos pelo SNS passam a estar integrados e a serem geridos pelas Misericórdias. É, ainda, mencionado que o processo de devolução dos hospitais às misericórdias é precedido de um estudo que avalie “a economia, eficácia e eficiência do acordo, bem como a sua sustentabilidade financeira”, ao que deve acrescer a diminuição dos “encargos [atuais] globais do SNS em, pelo menos, 25% “, sendo que o prazo da duração do acordo de transferência permanece por 10 anos. A “redução em, pelo menos, 25%” nos custos vai ter implicações quer nos trabalhadores, quer na qualidade do serviço que será prestado às populações.

Apesar do diploma contemplar o estudo, não soubemos se o mesmo foi ou não realizado e, caso tenha sido não foi dado a conhecer ao Parlamento, nem às populações, nem aos profissionais abrangidos por esta medida. Aquilo que se sabe é que a única motivação do Governo é a redução de custos desresponsabilizando-se da prestação dos cuidados de saúde às populações.

Pese embora no artigo 9º do Decreto-Lei nº 138/2013, de 9 de outubro, estar mencionado o “pessoal afeto à prestação de cuidados” não fica claro nem a salvaguarda dos postos de trabalho nem a manutenção do número de profissionais necessários para prestar cuidados de saúde de qualidade. Concorrendo ainda para motivo de inquietação, a possibilidade de retirada de direitos por via da imposição dos contratos individuais de trabalho e da mobilidade. Estas preocupações revelaram-se para mais de uma centena de trabalhadores do Hospital de S. José em Fafe uma certeza, na medida em que não foram integradas no mapa de pessoal da unidade de saúde depois de ter sido feita a transferência para a Misericórdia local.

Por fim, não fica claro a salvaguarda dos equipamentos e mobiliário existente em cada uma das unidades hospitalares, da propriedade do Estado.
Estes hospitais passaram para a gestão pública, por um processo de “nacionalização” após o 25 de Abril, sob o primado da criação de um serviço público de saúde universal e com cobertura nacional, ficando o Estado a pagar rendas às respetivas Misericórdias. Muitas das instalações encontravam-se num elevado estado de degradação e com equipamentos obsoletos, tendo o Estado procedido a requalificações, ampliações e a adquisição de equipamentos tecnologicamente mais avançados, num investimento público de largos milhões, suportado por dinheiros públicos, para benefício da saúde dos utentes que agora será revertido para as Misericórdias sem a respetiva contrapartida para o Estado.
O Decreto-Lei nº138/2013, de 9 de outubro, do anterior Governo concretiza um dos objetivos que norteou a sua atuação: o desmantelamento do Serviço Nacional de Saúde tal como está consagrado e estabelecido ao mesmo tempo que favorece os grupos económicos e, no caso em apreço, as instituições particulares de solidariedade social (IPSS) e as Misericórdias.
Na prática, o que o XIX Governo Constitucional (PSD/CDS) pretendeu foi avançar com um processo de privatização encapotado destes hospitais. Os hospitais, ao serem entregues a instituições de solidariedade social, como as Misericórdias, deixam de ser geridos por uma entidade exclusivamente pública, para serem geridos por entidades privadas, pese embora, sejam de solidariedade social.
O direito à saúde só é garantido na íntegra a todos os utentes, quando é assumido diretamente por estabelecimentos públicos de saúde integrados no SNS.
No nosso entendimento só a gestão pública dos hospitais integrados no SNS cumpre os princípios constitucionais, nomeadamente, a universalidade e a qualidade dos cuidados de saúde, independentemente das condições sociais e económicas dos utentes. Entendemos, igualmente, a relação entre o Estado com as Instituições de Solidariedade Social no respeito pela Constituição e no seu papel complementar quanto aos objetivos da prestação de cuidados de saúde, enquanto o Serviço Nacional de Saúde não tiver capacidade de resposta.
Neste sentido o PCP propõe a revogação do Decreto-lei nº 138/2013, de 9 de outubro, e que os hospitais se mantenham sob gestão pública, integrados no SNS, para assegurar o direito à saúde para todos os utentes. Propõe, também, que nenhum serviço ou valência atualmente existente ou que venha a existir possa ser encerrado ou diminuída a prestação de cuidados de saúde, bem como a salvaguarda dos direitos dos trabalhadores.
Assim, nos termos constitucionais e regimentais aplicáveis, os Deputados abaixo indicados apresentam o seguinte Projeto de Lei:
Artigo 1º
Objeto

1 – A presente lei elimina o modelo de articulação definido no Decreto-Lei nº 138/2013, de 9 de outubro entre o Ministério da Saúde e estabelecimentos e serviços do Serviço Nacional de Saúde (SNS) com as instituições particulares de solidariedade social (IPSS), enquadradas no regime da Lei de Bases da Economia Social, aprovada pela Lei nº 30/2013, de 8 de maio.
2 - A presente lei revoga ainda o regime previsto no Decreto-Lei nº 138/2013, de 9 de outubro que estabelece o regime de devolução dos hospitais das Misericórdias, que por força do Decreto-Lei nº 704/74, de 7 de dezembro, alterado pelo Decreto-Lei nº 14/80, de 26 de fevereiro, e do Decreto-Lei nº 618/75, de 11 de novembro, alterado pelo Decreto-Lei nº 519-G2/79, de 29 de dezembro, foram integrados no setor público e são atualmente geridos por estabelecimentos ou serviços do SNS.

Artigo 2º
Extinção do processo de devolução de hospitais às Misericórdias

1 – Consideram-se nulos e sem efeito os acordos de cooperação celebrados no âmbito do regime de devolução de hospitais às Misericórdias.
2 – O disposto no número anterior determina a imediata extinção do processo de devolução de hospitais às Misericórdias, independentemente da fase em que se encontre.
3 – Para cumprimento do nº 2, e nos casos em que tenha sido celebrado acordo de cooperação e concluído o respetivo processo de devolução é estabelecido o prazo de seis meses, no fim dos quais se concretiza a transferência para a gestão pública.

Artigo 3º
Manutenção das prestações de saúde e dos meios humanos e materiais nos hospitais cuja propriedade do edificado seja das Misericórdias e que foram integrados no setor público por força do Decreto-Lei nº 704/74, de 7 de dezembro

1 – A revogação dos acordos de cooperação definidos no âmbito do Decreto-Lei nº 138/2013, de 9 de outubro não implica a perda ou redução dos meios materiais e do número de valências nem interfere na qualidade das prestações de saúde.
2 – O disposto no número anterior não prejudica a entrada em funcionamento de novas valências, que não se encontrando ainda em fase de implementação foram objeto de análise, estudo e decisão quanto à sua inclusão no conjunto de cuidados prestados à população.
3 - Independentemente do âmbito, modalidade e vínculo contratual, os hospitais cuja propriedade do edificado seja da Misericórdia mantêm ao seu serviço o pessoal afeto às unidades de saúde, não podendo a revogação dos referidos acordos de cooperação determinar a redução dos meios humanos.

Artigo 4º
Salvaguarda dos direitos dos profissionais

1 – A presente lei assegura a continuidade das relações laborais dos trabalhadores no Serviço Nacional da Saúde, não afetando a subsistência nem o conteúdo dos contratos de trabalho.
2 – O disposto no número anterior abrange todos os trabalhadores, independentemente da respetiva categoria e vínculo contratual, sendo aplicáveis as disposições correspondentes à transmissão de estabelecimento previstas no Código do Trabalho.

Artigo 5º
Convenções com as Misericórdias e Instituições Particulares de Solidariedade Social

A presente lei não exclui o recurso ao estabelecimento de convenções com as Misericórdias e Instituições Particulares de Solidariedade Social em complementaridade com o Serviço Nacional de Saúde, enquanto este não estiver em condições de assegurar em qualidade e tempo útil a prestação de cuidados de saúde.

Artigo 6º
Norma revogatória

É revogado o Decreto-Lei nº 138/2013, de 9 de outubro.

Artigo 7º
Entrada em vigor
A presente lei entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação.

Assembleia da República, em 18 de dezembro de 2015

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