Projectos de Lei nº 340/VII e nº 341/VII, do PCP, respectivamente, sobre a "garantia dos alimentos devidos a menores" e que "cria uma licença especial para assistência a menores portadores de deficiência profunda"
Intervenção da Deputada Odete Santos
Reunião Plenária de 14 de Maio de 1997

 

Senhor Presidente,
Senhores Deputados,

O P.C.P. optou por apresentar hoje, num dia em que o debate começou por indiciar centrar-se em torno de inciativas legislativas sobre o quadro legal da Família, optou por apresentar duas iniciativas legislativas que reputa da maior importância para a resolução de graves problemas que crianças, mulheres e homens, vivendo sob variadas formas de família, sentem na sociedade.

A que o Estado não pode nem deve ser estranho.

Um desses projectos, o da Garantia de Alimentos devidos a Menores, pretende resolver o calvário que se abate sobretudo sobre as famílias monoparentais, quando se torna difícil, quando não impossível, receber do progenitor obrigado a alimentos, a contribuição para os alimentos devidos às crianças.

A execução de uma sentença obtida em processo de regulação do poder paternal, torna-se muitas vezes numa caminhada que mãe e filho percorrem aprendendo um novo desespero: o de saber que uma sentença não é tudo, e pode mesmo ser nada.

Se o progenitor obrigado a alimentos ainda se conta entre os bafejados pela sorte, dispondo de um emprego fixo, com uma remuneração certa e permanente, tudo está facilitado.

Mas se, como hoje se vai tornando tristemente vulgar, se quer fazer valer uma sentença contra alguém que trabalha com um recibo verde, um falso recibo verde, o recebimento das pensões de alimentos devidas às crianças, é impossível, na maioria das situações.

O patrão informará o Tribunal de que o regime de trabalho é o de prestação de serviços, e não terá de fazer os descontos impostos na Organização Tutelar de Menores.

Mas pode ainda acontecer, com um pouco de sorte, que o progenitor relapso, ainda esteja contratado a prazo, avolumando-se as esperanças de que assim se mantenha, para que as magras pensões possam ser recebidas.

Sabemos, no entanto, como nesta época de instabilidade no emprego, a era apregoada como a da meta do fim do emprego estável, proliferam contratos de 24 horas, de 15 dias, enfim, dos mais variados prazos. Sabemos, como se procura de fábrica em fábrica, de escritório em escritório, de serviço em serviço, um emprego que garanta a subsistência por uns tempos nesta vida vivida em sucessivos prazos. E nestas situações, quando o Tribunal procura o obrigado a alimentos para o fazer cumprir, encontra muitas vezes apenas os sinais da sua meteórica passagem por um emprego precário. E as pensões continuarão por pagar, avoluma-se o montante da dívida, enquanto as famílias monoparentais continuam a viver dificilmente.

A somar-se a todas estas situações está ainda a daqueles que procurando no estrangeiro os meios de subsistência conseguem assim eximir-sem à execução da sentença que os obriga à prestação de alimentos.

E há ainda a situação daqueles que, querendo pagar pensões não o podem fazer, porque também não lhes é paga a contraprestação do seu trabalho. São os trabalhadores com salários em atraso.Os trabalhadores que sofrem as consequências do laxismo do Estado na aplicação das leis do trabalho. Neste caso, a sentença é, de facto inexequível.

É tempo de pôr cobro ao calvário daqueles , melhor diríamos daquelas, porque a situação de que cuidamos atinge fundamentalmente as mães, daquelas que conhecem de cor as escadas do Tribunal, os nomes dos funcionários judiciais, os curadores de menores, e que não encontram resposta para as suas interrogações. Que têm uma sentença, mas vão aprendendo que isso não é tudo. E que, mesmo que a consigam executar depois de muitas buscas, depois de recorrerem por último à lei penal e de superarem a difícil prova do crime de omissão de assistência à família, passaram anos a contas com a exclusão social para que são remetidas as mulheres e as crianças. Exclusão onde estas fazem cedo a aprendizagem do mundo dos adultos.

Com o Projecto de lei que apresentamos procuramos dar resposta às situações que resumimos.

Porque está em causa o direito à vida das crianças.

Propomos assim que se o obrigado a alimentos não satisfizer as quantias em dívida nos termos fixados na organização Tutelar de Menores,o Tribunal fixe a prestação alimentar a adiantar pelo Estado, enquanto durar a situação de incumprimento.

Tal prestação, nunca pode exceder o montante do salário mínimo nacional, por cada devedor, e só será atribuída se o alimentado não tiver rendimento líquido superior ao salário mínimo nacional., nem beneficie, nessa medida de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre.

No projecto propõe-se a criação de um Fundo no âmbito da Segurança Social, destinado ao pagamento das prestações fixadas pelo Tribunal, fixando-se a proveniência das receitas do mesmo Fundo.

Este Fundo fica subrogado em todos os direitos dos menores a quem sejam atribuídas as prestações, com vista ao seu reembolso.

Cremos que a iniciativa legislativa que apresentamos resolverá os problemas graves de muitas famílias e o Estado cumprirá assim o seu dever de apoiar a infância, as mães e os pais.

A outra iniciativa legislativa vem da anterior legislatura, e foi apresentada então no âmbito de outras iniciativas sobre a situação dos deficientes. Não chegou sequer a ser discutida, ao contrário do projecto, também relativo a crianças deficientes, que hoje com algumas alterações, faz parte da Lei da maternidade e paternidade.

Sabe-se como os pais e as mães das crianças portadoras de deficiência profunda passam por tremendas dificuldades para poderem conciliar a sua vida profissional e pessoal, com a assistência que têm de prestar às crianças.

Muitas vezes a comunicação social faz-se eco da situação dramática daqueles pais que têm de amarrar os filhos em casa, para poderem ir trabalhar. Sabe-se como muitas vezes se culpabilizam injustamente os próprios pais, quando é sobre o Estado que deve recair o dedo acusador, por ter a obrigação de apoiar as crianças e as famílias nesta situação.

Propomos, por isso, que o pai ou a mãe de um deficiente profundo tenha direito no seu trabalho, a uma licença especial se não tiverem ao seu dispor uma instituição adequada onde a criança possa ser acolhida durante o seu horário de trabalho. Licença especial que durará até que o Centro Regional de Segurança Social disponibilize a instituição, sendo o prazo máximo da licença de dois anos.

Esta será, segundo propomos, uma licença remunerada, implicando apenas a perda do subsídio de refeição, devendo o Centro Regional de Segurança Social compensar a entidade patronal dos vencimentos pagos por esta durante a situação de licença.

Segundo um Presidente dos Estados Unidos da América, que era, também ele, um deficiente, a forma como um Estado trata os deficientes, serve, só por si para aferir da forma como esse Estado trata os seus cidadãos.

Segundo este critério, podemos concluir, face à situação existente no que toca aos deficientes, que o tratamento dispensado aos cidadãos portugueses não é um tratamento próprio de um Estado de Direito Democrático.

Senhor Presidente,
Senhores Deputados,

Das restantes iniciativas legislativas hoje em debate, podemos distinguir as que dizem respeito a direitos dos membros do agregado familiar, e as que pretendem que a Assembleia legisle sobre os direitos da família.

E isto abre um campo de debate ideológico já nosso conhecido.

O Grupo Parlamentar dos Verdes trouxe a este debate uma realidade familiar que, acolhida na Constituição da República como Família- a união de facto- não tem ainda o tratamento legislativo devido.

O P.C.P já apresentou iniciativas legislativas sobre a união de facto. Que entendemos, no entanto, reponderar, por forma a aproximar o regime da família baseada na união de facto da família baseada no casamento.

Com efeito, tendo sido importantes os passos que se deram na consagração de alguns direitos, a verdade é que a lei ordinária se apresenta ainda tímida e receosa, perante uma realidade social a que a lei não pode voltar costas.

A união de facto está enraízada há muito na sociedade portuguesa, e dela encontramos eco nos próprios textos vicentinos, na união por palavras de presente,como acontece na união entre Pero marques e Inês Pereira na conhecida Farsa de Gil Vicente, em contraposição com as uniões chamadas de benção.

Sendo assim, há que proceder à alteração da legislação existente, por forma a que problemas graves, de que são normalmente vítimas as mulheres, como os problemas resultantes de património adquirido, sejam resolvidos.

Esta é uma forma de encarar a realidade familiar sempre em mutação.

A lei não pode quedar-se em formas fixistas de encarar a realidade familiar, porque ela muda pela própria acção política dos que ainda se apegam a um conceito de família que já não existe, porque essa acção política destruiu-a.

Chegámos aos finais do Século XX com uma realidade ao nível da unidade familiar sofrendo os embates das novas transformações económicas e sociais. Que se abatem sobre a família e a transformam.

A família não é uma criação jurídica. Não o é, segundo a nossa Constituição.

Todos nos recordamos como, em nome de concepções de família já então ultrapassadas, se impôs sofrimento a muitos homens e mulheres portuguesas em nome de concepções transpessoais de família, em nome daquilo a que se chamava valores da família, Onde se imolava a felicidade pessoal de seres humanos.

A família não é um ente com personalidade , e por isso mesmo,não há nada que se possa definir como política de família.

Aquilo que às famílias interessa, para a realização pessoal dos seus membros, como diz o nosso texto constitucional, são as várias políticas de que resultará, ou não, o bem estar daqueles.

As condições que se vivem tornam ilusórias as esperanças dos que ainda esperam ver reconstituída a natureza transpessoal da família. Dos que ainda falam em valores da família sobrepostos aos valores individuais dos que a constituem.

De facto, são os próprios valores do Deus Mercado que , contraditoriamente , acentuam a impossibilidade de consagração de valores transpessoais da família.

É o Mercado que determina horários de 50 horas semanais, que determina a flexibilidade privando de convívio os membros do agregado familiar.

É o mercado que retira o direito à convivência decorrente do nosso texto constitucional.

É o Mercado que , pelas condições insuportáveis de vida que oferece à grande generalidade dos seres humanos, contribui para o decréscimo assustador das taxas de natalidade. Não só porque em função da nova escravatura no trabalho, desagrega a família nuclear, pela privação do direito à convivência e do direito à felicidade, como porque priva os seres humanos em geral da satisfação de necessidades básicas, bem patentes nas tremendas taxas de feminização das mulheres e das crianças.

A Família nuclear, unidade de consumo de bens e serviços, e não unidade económica, reduz-se, desagrega-se. As famílias monoparentais são uma nova e expressiva realidade.

É neste quadro que se apresentam como obsoletas todas e quaisquer políticas que teimem em repor valores passadistas, de que, aliás são sempre as primeiras vítimas as mulheres , logo seguidas pelas crianças.

Crianças em nome das quais se torna urgente reclamar uma nova lei de protecção da maternidade e da paternidade, que minore os efeitos de jornadas de trabalho escravo que põem em causa a saúde das grávidas e o futuro dos que vão nascer, que as privam dos contactos com os pais, que tornam possível o aparecimento de novos fenómenos de famílias em risco, de crianças maltratadas.

Lendo o Projecto de Lei do P.S.D. parece-nos que será mais ou menos inócuo, pois tudo o que dele consta tem de ser prosseguido com políticas sectoriais- a política de educação, a política de emprego, a política de saúde, a política para a 3ª idade, a política fiscal, a política de habitação, a política de segurança social, a política de urbanismo, a política fiscal- que não como uma política de família.

Inóquo já não é o Projecto de lei do C.D.S./PP.

Embora tendo expurgado muitos dos artigos do seu Projecto de lei de Bases da Família apresentado nesta Assembleia em 1988, a verdade é que o actual projecto não aceita as transformações bem patentes na realidade familiar.

E há palavras perigosas. Que adquiriram um significado de que alguns juristas pretendem extrair consequências em termos legislativos. São palavras como unidade e estabilidade que justificaram no passado hierarquias dentro da própria família, e probições da assunção de rupturas através do divórcio.

E não é a família que é transmissora de valores. Já o foi por imposição.

São os membros da família, é a sociedade que transmite valores. E esta é que faz reflectir esses valores nos membros da família.

Deve tratar-se de um lapso, o que consta do nº 3 da Base XXII do Projecto de lei do CDS/PP.

Pretende consagrar-se o direito, para os pais, de se oporem a que os filhos sejam obrigados a receber ensinamentos que não estejam de acordo com as suas convicções éticas e religiosas.

Isto não é, como à primeira vista poderia julgar-se, a consagração do direito a não frequentar aulas de religião e moral.

O que o CDS propõe redundaria , por exemplo , na possibilidade de oposição dos pais a que ,através do ensino científico ,os filhos fossem encaminhados a respeito da criação do mundo para um ensinamento diferente daquele que as religiões estabelecem dogmaticamente sobre tal criação.

Redundaria, por exemplo, na impossibilidade de um Professor de Direito explicar a alguns dos seus alunos as razões constitucionais para a despenalização do aborto.

Cremos acreditar que esta proposta reside num lapso. Como lapso será ignorar o artigo 1886º do Código Civil que estabelece que a partir dos 16 anos já não podem os pais decidir sobre a educação religiosa dos filhos.

Ou será que o C.D.S./ PP pretende mesmo revogar este artigo em nome da transmissão de valores pela Família.?

Lapso não será, não é, o que consta da Base XIV. Aqui, os proponentes pretendem fazer passar uma proposta que viram recusada, mais uma vez, na revisão constitucional.

De facto, antes do nascimento, nos termos da nossa Constituição, não pode falar-se em pessoa, não pode falar-se em criança.

E esta proposta, só por si, se mais indícios do facto não houvesse, revela que por detrás deste Projecto de Lei, não está a realização pessoal, a felicidade dos membros do agregado familiar.

Mas a consagração de direitos para a família como ente jurídico, o que aliás resulta da Base IX, de que resultariam limitações à felicidade pessoal, ao bem estar, à harmonia dos seres humanos que compõem a realidade familiar.

Encaramos favoravelmente as iniciativas legislativas que, visando as condições de vida dos membros da família, têm por objectivo contribuir para o bem estar e a felicidade dos mesmos.

Iniciativas como as do alargamento da licença de maternidade e paternidade, como a relativa à união de facto, visam esse objectivo.

Meramente programática e inócua, nada acrescentará aos direitos das mães e dos pais, dos cônjuges, das pessoas em união de facto, das crianças. A outra, bem estruturada para o cumprimento dos seus objectivos, não perdeu, apesar dos retoques, as características passadistas já existentes na sua antecessora.

Disse.