Legítima defesa

Artigo de Vitor Dias

«Semanário» de 8 de Outubro de 1999


Entendeu Fernando Rosas que não podia usar a sua última coluna de opinião no "Público" antes da votação de domingo sem reincidir em mais uma das deturpações sobre a orientação, acção e objectivos do PCP que, em assinalável medida, têm sido a grande terraplanagem operada pelo Bloco de Esquerda para melhor exibir a sua alegada diferença e valia.
Com efeito, só porque o "Expresso" titulou uma entrevista de Carlos Carvalhas com a afirmação de que "para mudar o PS é preciso termos força", logo Fernando Rosas se apressou a dar o precipitado passo de gigante que foi daí concluir que a tanto se resume o projecto e os objectivos do PCP, apesar de qualquer pessoa séria e interessada ter muitas maneiras de comprovar que o PCP está enfatizando outras, e bem mais cruciais, razões de voto na CDU.

E, como não se pode acreditar que um intelectual com as responsabilidades de Fernando Rosas já só leia títulos e estruture comentários e juízos políticos sobre outras forças com base em títulos de entrevistas, cresce então uma terrível suspeita. A de que ele sabe perfeitamente, mas resolveu escondê-lo dos leitores, que a citada afirmação de Carlos Carvalhas foi feita no contexto de uma pergunta que inquiria das razões porque o PCP não tinha desafiado o PS para "uma aliança de governo". E também sabe perfeitamente que, na entrevista de Carvalhas ao "Expresso", há passagens que, embora com as limitações de desenvolvimento inerentes ao tipo de entrevista, distanciam claramente o PCP de concepções de meros "arranjos de cúpula" ou de "alianças entre partidos", antes evocam o papel dos movimentos sociais, sublinhando mesmo a ideia de que "é possível, certamente com tempo, que o avanço do movimento social permita uma recomposição política, com efeitos no interior dos partidos".
Mas há mais: F. Rosas conhece perfeitamente a densa reflexão do PCP, consagrada no seu último Congresso (1996) e já exposta com suficiente clareza num colóquio em F. Rosas também participou em Coimbra, sobre a complexa questão da construção de uma alternativa de esquerda ao rotativismo e alternância entre PS e PSD. Só que não resiste ao lamentável truque de, por um lado, absorver importantes componentes dessa reflexão e depois fazer de conta que o PCP não a tem e que, em lugar dela, tem orientações resumíveis ao objectivo de ser "flor de esquerda na lapela" da governação socialista ou uma "espécie de corrector apendicular das leis e das políticas do Governo" PS.

Aliás, a orientação do Bloco de Esquerda em certos aspectos é bastante confusa (ou talvez não) : desvalorizam manifestamente o perigo e as consequências de uma maioria absoluta do PS, não falam muito contra o PS, tem apoiantes que, como é publico, tem boa parte do seu coração no PS, parecem sobretudo preocupados em disputar influência a quem foi - combativamente, no duro, sem favores dos "media", e tanto no terreno social como parlamentar - a oposição de esquerda ao Governo do PS, e depois, numas linhas impressas, dão-se ares de radicalismo decretando, para a eternidade, um nulo lugar do PS em futuras soluções de esquerda. O que não diria F. Rosas se nós viéssemos falar do Bloco como "flor de esquerda na lapela" rosa depois de termos visto António. Hespanha declarar que "é importante pôr no Parlamento vozes da esquerda não-dogmática, capazes de chegar a entendimentos, acessíveis a toda a gente e com sentido de utilidade" e Miguel Portas considerar "interessante um quadro em que a maioria PS dependesse dos deputados do Bloco".