Novo bloco
velhas mistificações

Artigo de Domingos Abrantes

«Avante!» de 7 de Outubro de 1999


A VIDA POLÍTICA nacional regista, nomeadamente no campo da esquerda, um abundante número de nascimentos e de mortes de organizações políticas. Trata-se de um processo natural, dir-se-ia mesmo quase inevitável se se tiver em conta que na sua origem estão fenómenos como a estratificação social, com os correspondentes interesses e visões da vida e do mundo, a diferenciação ideológica que acompanha o avolumar dos problemas sociais, o assalariamento de camadas pequeno-burguesas e o processo contraditório que se gera entre a consciência de classe e o estatuto social e também a influência nas mentes de acontecimentos marcantes da situação nacional e internacional que, conforme se trate de fluxos ou refluxos na acção revolucionária, assim determinam a natureza radical ou conformista dos objectivos políticos destas organizações.

Entretanto, apesar da diversidade político-ideológica, estas organizações têm-se caracterizado, nos seus traços mais marcantes, por uma matriz comum. A base social de apoio e a origem dos seus progenitores situam-se na sua imensa maioria em sectores da intelectualidade pequeno-burguesa, que alguns analistas nos dizem ser urbana, outros mediática. A renovação da esquerda que se têm proposto realizar assenta sempre numa plataforma anticomunista e anti-PCP, o que se explica pelos seus preconceitos de classe em relação ao papel dos trabalhadores e do seu Partido.
Neste aspecto, o mais recente produto deste mundo, o Bloco, não traz nada de novo, nem original. Novo, pela sua dimensão, é talvez o entusiasmo com que «velhos profissionais» da renovação da esquerda saudaram o aparecimento do Bloco, multiplicando-se as proclamações de fé em que desta vez se consiga finalmente renovar a esquerda, uma esquerda onde o PCP, irremediavelmente condenado às purgas do inferno por «esclerose ideológica», por «ausência de projecto», por ser «oposição chocha» e muitos outros pecados, só caberia se se submetesse às suas estratégias.
A primeira perplexidade que nos surge resulta do facto de verificarmos que o Bloco se propõe renovar uma esquerda que lhe é exterior, mas que na prática não existe para além deles.
Nesta cruzada renovadora encontramos toda uma galeria de conhecidos «teóricos» renovadores (bloquistas e não bloquistas), merecendo particular destaque o inefável dr. Eduardo Prado Coelho, sempre doutrinário, sempre transpirando ciência certa, pela simples razão de não ter nem a coragem, nem a humildade de reflectir sobre os disparates e as falsas profecias lançadas ao longo de mais de 20 anos.
Já em 1986, Eduardo Prado Coelho, reagindo à acusação (não nossa) de ser politicamente volúvel, procurava tranquilizar os acusadores, garantindo-lhes que «tinha sido desde 1975 uma pessoa de uma só ideia: renovar a esquerda» (1).
Já lá vai o tempo em que EPC considerava a distinção entre esquerda e direita como fazendo parte da arqueologia política.
É sabido onde acabaram por poisar este renovador da esquerda bem como vários outros, no PS e mesmo no PSD. O curioso é que, ao mesmo tempo que saúdam o aparecimento do Bloco, apelam ao voto no PS, um partido que, a avaliar pela sua prática política, toma pouco a sério o arsenal doutrinário destes batalhadores pela «renovação» da esquerda.
Mas cabe perguntar. Qual a razão deste entusiasmo e desta esperança? Por considerarem serem originais e avançadas as propostas bloquistas, coisa que fora a retórica propagandística e o recurso às adjectivações, não se consegue vislumbrar? Por introduzirem uma prática política eticamente superior, que o recurso a certas mistificações políticas e a processos mediáticos pouco edificantes não abalizam? Por introduzirem novas e eficazes formas de luta, sabendo-se a facilidade com que parasitam acções de massas para fins mediáticos? Por possuírem um património de luta e de coerência que não se lhes conhece? Por se apresentarem como «a esquerda não arrogante» o que vindo de quem vem poderia ser considerado como uma autocrítica, não fora a arrogância com que reivindicam o exclusivo da esquerda? Nada disso, mas tão só a renovada esperança de que desta vez o Bloco possa resolver o incontornável problema que os «renovadores da esquerda» sempre enfrentaram, o papel do PCP na sociedade portuguesa e em particular no campo da esquerda, esperança que os progenitores do Bloco não parecem querer deixar em mãos alheias, assumindo-o como uma questão central, considerando o PCP um empecilho, ao revelar-se «incapaz de perceber a complexidade da sociedade portuguesa pelo que não é capaz de potenciar mais do que um projecto de resistência» (2).
Nesta tese está todo um mundo de ideias feitas, passadas e presentes, em relação ao PCP, sendo por isso, e só por isso que nos ocuparemos hoje do Bloco, apesar de há muito conhecermos as deturpações e falsificações a que são sujeitas as orientações, as propostas e as actividades do PCP, pondo em causa as suas concepções fundamentais, o que tem a ver com a natureza de classe do PCP e o seu papel na sociedade portuguesa.
A avaliar pela profusão de declarações contraditórias é fácil concluir que o Bloco se afirma como um agrupamento heterogéneo do ponto de vista político-ideológico, uma «esquerda polifónica» excepto nos preconceitos de classe em relação ao PCP, à classe operária e à sua luta. Os resultados concretos das diferentes tentativas dos renovadores, aconselhariam um pouco mais de humildade aos que abraçaram esta nova cruzada que, por se apresentar como nova, poderá ser susceptível de obter, no imediato, o benefício de dúvida de algumas pessoas, mas que se transformará em sabor amargo quando acordarem da ilusão, quando passar «o fenómeno de moda».
O aparecimento do Bloco deu lugar a um verdadeiro desvario político-ideológico, sobre o poder, a vida política nacional, a natureza e arrumação das forças partidárias, as soluções governativas, a avaliação do movimento popular, etc., etc..
Mas o Bloco será mesmo uma coisa nova? Do ponto de vista formal é claro que sim, na sua essência obviamente que não.
Não é fácil, a qualquer simples mortal, perceber como é que se produz o milagre da transformação do velho em novo pela simples transmutação de três organizações em uma. O adjectivo novo revela-se nestas questões de uma enorme utilidade para insinuar o corte com o passado e disfarçar o vazio de substância, vazio que não se preenche com o recurso a truques propagandísticos
Diga-se entretanto, por uma questão de simples bom senso, ser falsa a tese bloquista escarrapachada por essas ruas de Portugal, de que «o que é novo é que cresce», tese não confirmada nem pela vida, nem pela ciência, e muito menos pelas experiências políticas dos progenitores do Bloco.
Na época do ascenso da luta libertadora, na época em que o movimento operário e popular estava na ofensiva, sectores da pequena burguesia intelectual, nomeadamente estudantil, tinham um objectivo bem mais ambicioso, o de renovar ou refundar o PCP, acusado de revisionista, de acomodado ao sistema, sem fibra revolucionária. A classe operária, corrompida pelas migalhas burguesas, acomodara-se, perdera o seu papel como força motora da luta revolucionária, papel que passaria a caber aos estudantes e aos intelectuais.
Entrados no período de refluxo, o radicalismo correspondente à época da «revolução», época que nos dizem agora estar enterrada, transformou-se em conformismo e o utopismo em princípio de acção crítica. A defesa de orientações subjectivistas baseadas na acção espontânea, inorgânica, a sobrevalorização da força da nova cultura, dos novos (velhos) movimentos sociais, como força transformadora, transforma-se no Alfa e no Ómega da moderna forma de fazer política, expresso e sintetizado nas afirmações de que «ao contrário dos outros, nós distribuímos palavras» (3). Lá bem no fundo trata-se da velha crença cristã de que o Verbo se transformará em acção.
Quando se apresenta como exemplo da forma radical, moderna, de fazer política, o ter-se arranjado um quarto para uma jovem com Sida, percebe-se todo o alcance da afirmação de que «um revolucionário, hoje é um social-democrata sério e com coragem para enfrentar as grandes questões de frente» (4). Mais do que um branqueamento ideológico, estamos perante uma velha «doença social», típica desta camada. Ontem como hoje, o mesmo voluntarismo, o colocar objectivos na razão inversa da sua força. Condições objectivas e subjectivas de luta, correlação de forças, grau de contradições políticas e sociais, arrumação das forças de classe em cada momento, níveis de organização e experiência de luta, são coisas que não contam. Ontem como hoje, o horror face às longas caminhadas, o desprezo pelo trabalho «invisível» de acumular forças e sobretudo pela luta quotidiana de resistência dos trabalhadores e das massas populares sem o que não se criarão as condições para uma real alternativa.
E é por tudo isto que a seus olhos o PCP «não é capaz de potenciar mais do que um projecto de resistência».
É natural que aqueles que têm uma longa experiência de parasitar acções de massas para fins mediáticos, e que, contra todas as evidências, pensam ter tido papel determinante no vasto movimento de solidariedade com Timor, ignorem e desvalorizem a importância do enorme caudal de luta quotidiana de resistência à ofensiva do grande capital, esse «breviário do PCP» (5).
Sem a luta constante dos trabalhadores e das massas populares, não teria sido possível defender importantes conquistas democráticas, os salários seriam bem piores, a prepotência patronal sem limites, a redução do horário de trabalho, uma impossibilidade. Depois do dia 10, sejam quais forem os resultados eleitorais de uma coisa poderão estar certos, o PCP, como sempre fez, continuará, junto dos trabalhadores e das massas populares, a organizar e a animar a luta de resistência, a luta por dar solução concreta aos problemas que afectem o nosso povo, a luta nas instituições e fora das instituições pela defesa do regime democrático, por uma verdadeira alternativa de esquerda, só possível com o PCP. Nesta luta, com os comunistas, estarão todos aqueles que, sejam quais forem as dificuldades, não se vergam aos ditames da exploração, nem aceitam como inevitável para Portugal o neoliberalismo.
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(1) DN, 3/1/86
(2) Declaração de Princípios
(3) Miguel Portas, Visão, 2/9/99
(4) Miguel Portas, JN, 12/9/99
(5) Mega Ferreira, Público, 16/8/99