Um pouco de pudor

Artigo de Vitor Dias
no «Semanário»

2 de Outubro de 1998



Durante cerca de nove anos, de 1989 a 1998, o referendo esteve consagrado na Constituição e numa lei orgânica sem qualquer exigência de um determinado nível de participação eleitoral e nem uma só voz entre políticos, constitucionalistas, jornalistas e comentadores jamais deu pela falta de tal exigência ou requisito.

Este é, desde logo, um primeiro facto que devia impor algum pudor a todos os que, por súbitos critérios de conveniência, agora adiantam concepções e interpretações que colocariam os abstencionistas (que, por definição, nenhuma opinião manifestaram e nenhuma vontade expressaram) , quando superiores a 50%, a anular a vontade dos que realmente se manifestaram.

Em torno de mudanças decisivas para o nosso presente e futuro como povo e como nação - adesão à CEE, vinculação ao Tratado de Maastricht, integração na moeda única e sujeição ao Pacto de Estabilidade -, e todas com consequências cem vezes maiores que a regionalização, tudo andou para a frente e a toque de caixa e aí com zero por cento de participação eleitoral, pela simples razão de que, nesses casos, os referendos não fizeram parte nem das exigências do PSD nem das cedências do PS, ou vice-versa.

Este é um segundo facto que devia aconselhar algum pudor a todos os que, contra a letra do artº 256º da Constituição e até do inconstitucional e discriminatório 251º da lei orgânica do referendo, pretendem que, para a regionalização poder avançar por vontade de uma maioria parlamentar, seria necessário não apenas o «sim» ganhar mas ganhar com uma participação eleitoral de 50%, o que significaria transferir exclusivamente para os que lutam pelo «sim» a obrigação de garantirem uma afluência às urnas que é alheia à bondade dos seus argumentos, das suas convicções e vontade.

A lei orgânica do referendo votada pelo PS,.PSD e CDS-PP ( e poupada pelo PR ao crivo da constitucionalidade) já deu absurdamente aos adversários da regionalização uma injusta vantagem sobre os seus defensores. É que, como o «não» é vinculativo para a Assembleia da República por mais insignificante que seja a participação eleitoral, a lei orgânica. ao impor que o «sim» só será vinculativo - para a AR, repita-se, porque há muita gente que ainda não entendeu que o «vinculativo» é em relação a alguém e basta ir ao dicionário para ver que « não vinvulativo» não se confunde com «nulo» ou «inválido»- se se verificar uma participação de 50%, criou assim uma revoltante diferença e desigualdade entre a eficácia directa do «sim» e do «não».

Este é um terceiro facto que devia sugerir algum pudor a todos os que, pelos vistos insatisfeitos com o que ilegitimamente já obtiveram, agora ainda querem que, em caso de vitória do «sim com uma abstenção superior a 50%, a consequência final fosse a mesma - a inviabilização da regionalização - que seria se o «não» tivesse ganho. Ou seja, querem que as abstenções, se superiores a 50%, contem na prática como votos «não», o que seria seguir, consciente ou inconscientemente, na esteira das grotescas «habilidades» usadas no plebiscito de 1933. Haja pudor !