Debate sobre o Estado da Nação
Intervenção de Jerónimo de Sousa na Assembleia da República
12 de Julho de 2006

Sr. Presidente,
Srs. Deputados;

A verdadeira situação do país não confirma as previsões do governo, nem tão pouco a imagem meticulosa e ilusoriamente construída de um país no bom caminho a resolver os seus problemas e a andar no sentido do desenvolvimento económico e social.

De facto, a realidade está cada vez mais distante das idílicas encenações de modernidade do Simplex, do Prace ou do Plano Tecnológico e se há disfarces que momentaneamente possam criar e sustentar um mundo de ilusões, não há discursos de optimismo e peças de propaganda que mudem a dura realidade com que Portugal está confrontado: a realidade da estagnação e da letargia, que se manterá por muito tempo se continuarmos com a mesma política!

Sinal destes tristes tempos está no facto exemplar de o governo convocar trompetas e fanfarras, não porque o PIB está a crescer acima da média europeia, como era necessário, mas para festejar apenas a subida de umas periclitantes décimas que ora sobem, ora descem, como agora estão novamente em queda.

Não há razões para festejar, nem tão pouco para sorrir. Não há razões para sorrir quando o desemprego atinge a maior cifra dos últimos anos. Não há razões para aplaudir quando o défice das contas externas continua a agravar-se. Não há razões para celebrar quando a produção industrial continua a cair. E nem sequer se pode saudar o tão anunciado e encarecido aumento do investimento estrangeiro e os apregoados grandes projectos de investimento de interesse nacional. Ao contrário, o que se vê é o investimento estrangeiro a cair e o perigo de novas deslocalizações com os seus dramas sociais, como a que acabamos de tomar conhecimento da GM/OPEL.

Mas há quem aplauda, festeje e celebre estes tristes tempos – a oligarquia dos banqueiros, da direita das negociatas, das chorudas reformas e dos suculentos dividendos.

Para estes, isto nunca esteve tão bem. Mas para milhares de portugueses e para o País a situação é bem outra. Neste “pára, arranca” entre a estagnação e as décimas o país continua a acentuar o seu declínio e a agravar a sua situação social e estrutural.

É tempo de olhar para as verdadeiras causas da difícil situação que o país atravessa, deixando de tornear e nalguns casos dissimular a origem dos males que assolam o país. Importante era ver quais os factores desta situação e porque é que eles permanecem e vão perdurar...

Em primeiro lugar eles assentam na política neoliberal e monetarista que privilegia e valoriza o sector financeiro e especulativo em detrimento das actividades produtivas.

Assentam na financeirização da economia e na concentração da riqueza, na liquidação das actividades produtivas nacionais e na entrega ao estrangeiro das principais alavancas da economia do país, nos dogmas da concorrência, do menos Estado, da mão invisível, da flexibilidade e do equilíbrio automático!

É esta política que permite e garante a brutal contradição que se exprime na comparação entre o desmesurado crescimento dos lucros da banca em 2005 e as dificuldades crescentes da generalidade das micro, pequenas e médias empresas das diversas áreas económicas, em particular dos sectores produtivos. Talvez por isso, também estejamos a assistir ao aumento insustentável do endividamento das famílias e das empresas não financeiras, cujo peso no PIB passou, neste último ano, de 78,9% para 84,2%.

A economia portuguesa tem sido comandada pelas actividades puramente financeiras e especulativas e pela completa secundarização das actividades produtivas, o Estado tem-se demitido das suas funções constitucionais no plano económico e social e tem rejeitado qualquer papel de protecção dessas funções e actividades, tal como tem negligenciado o papel positivo das Empresas Públicas.

O governo PS retrocede e alimenta dois entorses históricos do capitalismo português: dependência do capital estrangeiro e protecção do Estado aos poderosos.

Tem posto o acento tónico das políticas no défice orçamental, em detrimento do crescimento económico quando era necessário precisamente o contrário até para combater depois o défice de forma segura e sustentada. Assim não vamos lá!

São estas as causas essenciais e não o Estado Social, os serviços públicos ou os trabalhadores da Administração Pública, que são hoje alvo, por parte do governo PS, do pior ataque de todos os tempos.

O que está em curso pela mão do governo é a concretização da agenda e objectivos do capital financeiro e dos grandes grupos económicos, não se tratando já e tão só de uma política justificada a pretexto de «reformas», mas de uma acção que constitui um verdadeiro programa dirigido contra os direitos dos trabalhadores, os serviços públicos e as funções sociais do Estado.

Programa que o Fórum empresarial e neo-liberal do Convento do Beato inspirou em muitas das suas medidas.

Programa que se tem traduzido num desbragado ataque aos serviços públicos, a coberto da restrição forçada e absurda da despesa, onde avança o encolhimento geral dos serviços, a sua concentração e afastamento das populações e do território, a sua degradação por falta de meios e que é em relação à administração pública uma verdadeira politica de terra queimada para as populações e para os trabalhadores.

Mas esta política não visa apenas diminuir a despesa do Estado, com todas as consequências que daí advém. Atrás disso vem também a entrega de importantes áreas em quase todos os sectores do Estado ao sector privado. É ver o entusiasmo com que os grupos económicos privados se lançam ao novo mercado que o Governo lhes abre e na maior parte dos casos lhes subsidia. É ver os negócios chorudos que se preparam na saúde com a entrega de hospitais e centros de saúde a privados ou das farmácias nos hospitais. É ver na educação a restrição e a desvalorização da escola pública e o avanço dos privados. É ver o avanço da mercantilização da água sob o eufemismo de concessão da exploração.

Assim, continuaremos a ser campeões da acentuação das desigualdades. Continuaremos a ter senhores do dinheiro nos lugares destacados da revista “Fortune” enquanto os mesmos de sempre pagam a factura que se alarga, agora também, com a contra-reforma da Segurança Social que vem por em causa o direito à reforma aos actuais trabalhadores às gerações futuras, a contínua redução dos seus valores e da sua incerteza no futuro.

O caminho não é reduzir despesas com o corte de direitos, mas impulsionar o aumento das receitas promovendo, também, o crescimento e o desenvolvimento económico

Com o forte contributo da política do Governo podemos dizer que vivemos numa sociedade cada vez mais precária. Uma sociedade com uma crescente precariedade dos rendimentos de quem trabalha ou vive da sua reforma, crescentemente diminuídos e engolidos pelo galopante aumento do custo de vida. Uma sociedade em que o direito à habitação é cada vez mais precário, seja com o aumento das taxas de juro que faz aumentar as prestações de quem tem habitação própria, seja com a aplicação da nova lei das rendas onde os direitos de muitos inquilinos ficarão seriamente comprometidos.

Esta é uma sociedade onde diariamente está a aumentar a precariedade laboral. No nosso país os trabalhadores com contratos não permanentes eram já em 2005, 750 mil, sendo esta apenas a realidade visível, porque hoje, para além da precariedade protegida pela lei, há um mundo infindável de abusos de figuras contratuais, de trabalho temporário de facto permanente, de trabalho a tempo parcial para esconder diminuições reais de salário, de trabalho ilegal e sem contrato. Um mundo de exploração desenfreada e desumana.

Tal como o temos sublinhado à medida que a ofensiva contra a democracia social e económica se desenvolve vemos inflectir também num sentido antidemocrático a democracia política e o próprio regime democrático é empobrecido e adulterado com preocupantes restrições das liberdades e garantias dos cidadãos.

Ofensiva que se expressa já nas intenções e nos projectos de revisão das leis eleitorais, nas alterações anunciadas na política de segurança interna e no chamado pacto de regime para a área da justiça que PS e PSD se dispõem a viabilizar.

Tal como são cada vez mais frequentes as acções de limitação de direitos e restrição de liberdades de acção política, de propaganda e de acção sindical a que se juntam repetidos actos de intimidação junto de dirigentes sindicais e políticos.

Actos de intimidação como aquele que resulta da identificação e posterior notificação como arguidos e termo de residência de dois dirigentes do PCP para prestarem declarações em resultado de uma acção de entrega de um abaixo-assinado na residência do Primeiro-ministro.

Se o Sr. Primeiro-ministro ou o Ministro da Administração Interna não sabiam deviam saber. Ao longo da nossa vida e da nossa história já provámos que não nos deixamos coagir. Mas cuidado! Antes de Abril um ajuntamento de quatro pessoas era uma manifestação ilegal. Esperamos que essa ideia não ressuscite com base de que em vez de quatro passam a ser vinte.

O governo pretende convencer os portugueses que as suas políticas são as únicas possíveis, inevitáveis e justas num mundo crescentemente globalizado e determinado pelo poder e a chantagem das grandes multinacionais.

Nem isso é verdade, nem a globalização e o poder das multinacionais podem explicar as opções políticas do governo.

Certamente que hoje se enfrentam mais dificuldades e o país se confronta com a tripla ameaça do contínuo crescimento dos juros altos, da tendencial revalorização do Euro, perante a aceitação cúmplice do próprio governo e do aumento do preço do petróleo, mas não são nem a globalização, nem o poder das multinacionais que explicam a inactividade e ausência de propostas na União Europeia face à chantagem do leilão das deslocalizações, tal como não explicam, nem justificam a privatização, por exemplo, da TAP e da ANA. Não é globalização, nem o poder das multinacionais que obriga o governo a ser cúmplice da fuga legal aos impostos dos sectores financeiros, nem tão pouco a não propor o fim dos offshores. Eis quatro medidas, de entre muitas mais que nos distinguem e que na sua concretização apenas estão dependentes da vontade política de quem governa.

É nossa profunda convicção de que país não está condenado ao pensamento único – a alternativa dos partidos do bloco central – que tem conduzido o país ao atraso e ao aprofundamento das desigualdades económicas e sociais. No verdadeiro interesse dos portugueses é possível realizar uma outra política alternativa.