Orçamento do Estado para 2004 (intervenção de abertura)
Intervenção de Lino de Carvalho
4 de Novembro de 2003

 

Senhor Presidente,
Senhor Primeiro-ministro,
Senhores Membros do Governo,
Senhores Deputados,

Este Orçamento do Estado para 2004 está condenado, à partida, por quatro pecados mortais:

• Não tem credibilidade;
• É socialmente injusto;
• Favorece descaradamente os interesses económicos e financeiros mais poderosos;
• Agrava a crise e aumenta o desemprego;

 

Não tem credibilidade

Não tem credibilidade em relação aos cenários que apresenta, prosseguindo a trajectória já condenada no debate do Orçamento de 2003 e que a vida confirmou plenamente. Tínhamos nós razão. Não tinha o Governo nem a Ministra das Finanças. Vai suceder o mesmo em 2004. O crescimento do PIB que nos é apresentado (0,5 % – 1,5 %) assenta sobretudo no investimento privado (FBCF) e nas exportações. Quanto ao primeiro, de um crescimento de 2% (ponto médio) previsto no OE de 2003 chegamos ao fim do ano com uma queda (negativa) de 7% (-8% / -6%). E, de repente, qual golpe de mágica, o Governo vem dizer-nos que em 2004 teremos um crescimento do investimento de 2,5%. Nas exportações previa o Governo em 2003 um crescimento de 6%. Vamos ter metade. E para 2004 o Governo apresenta-nos um incremento de quase o dobro, quando nada faz prever tal subida. Nem com o Euro 2004! Nas receitas fiscais o Governo empola propositadamente as expectativas de receitas fiscais em 2003 para dar alguma credibilidade às projecções apresentadas para 2004. Mas o mesmo se passa com a taxa de inflação. De 2,5% previsto para 2003 vamos ter, no final do ano uma taxa da ordem dos 3,4 %. Agora o Governo diz-nos que a inflação vai descer em quase 50%, mas não consegue explicar como. As razões deste Orçamento manipulado têm dois objectivos claros: apresentar-se em Bruxelas como bom aluno, com um valor artificial do deficit, e mesmo assim só com recurso a múltiplas receitas extraordinárias de venda de património e cedência de créditos (em condições, aliás, de duvidosa transparência, com custos elevadíssimos para o erário público e para a própria dignidade do Estado) e, sobretudo, com brutais cortes no investimento público e nas despesas com o pessoal. Quanto à manipulação da taxa de inflação ela destina-se, entre outras razões, a condicionar, baixando as expectativas, os aumentos salariais dos trabalhadores da Administração Pública. Aliás, a Dra. Manuela Ferreira Leite afirmou, numa entrevista, que o Orçamento de 2004 foi ”de longe o Orçamento mais difícil de elaborar”. Não tenho a mínima dúvida. Só para acertar os números deve ter sido um trabalhão dos diabos.

Mas a verdade é que o País, além do mais, está a ser submetido a sacrifícios sem nenhuma perspectiva de saída. Quanto aos municípios e freguesias portuguesas o Governo, declaradamente, viola de uma assentada a Lei das Finanças Locais e a própria Constituição extorquindo às autarquias 112,9 milhões de euros ao omitir as receitas resultantes do perdão fiscal de 2002. E recorre a sucessivas operações de engenharia patrimonial, orçamental e financeira para o Governo apresentar um défice virtual que nem sequer se está a traduzir na consolidação das contas públicas. Como sublinham todos os observadores sem as receitas extraordinárias o défice de 2003 iria parar aos 5%. E pôr em marcha, para esse efeito, uma política orçamental restritiva numa conjuntura de crise económica só tem como resultado o agravamento da própria crise e do défice estrutural, como ainda na semana passada foi confirmado pelas projecções de Outono da própria Comissão Europeia (défice estrutural de mais meio ponto em 2004!). Só tem como resultado a degradação das condições de vida dos portugueses, o desemprego, a pobreza, a insegurança geral quanto ao futuro. Põe em causa o próprio desenvolvimento da economia nos próximos anos.

É socialmente injusto

Este é o Orçamento mais injusto, mais penalizador de quem trabalha, dos reformados, dos deficientes, dos sectores mais frágeis da sociedade portuguesa, desde há muitos anos.

Pelo terceiro ano consecutivo os trabalhadores vão perder poder de compra. O Governo não prevê dotações para o aumento das tabelas salariais acima de 1% a 1,5%, inferiores à própria taxa de inflação que o Governo diz que prevê. Actualiza os escalões do IRS e as deduções à colecta em 2 % o que obviamente não tem nada a ver, como a vida demonstrou em 2003, com a taxa de inflação real nem com os aumentos de remuneração expectáveis. E mesmo aqui o Governo deixa na mesma os valores de deduções previstos para, entre outros casos, as contas-poupança reformados, poupança-habitação, poupança-educação e, sobretudo, os benefícios para os cidadãos deficientes o que deve ser a forma que o Governo encontrou para celebrar o Ano Europeu das Pessoas com Deficiência.

Olhando para o Orçamento da Segurança Social a nossa perplexidade não é menor. O Governo continua a descapitalizar o Sistema Público de Segurança Social, não cumprindo a lei, não transferindo o mínimo de 2 pp das quotizações dos trabalhadores para o Fundo de Estabilização Financeira. Já em 2003, dos 462,4 milhões de euros previstos de transferência para este Fundo (já de si inferior ao que dispõe a lei) só pensa transferir, até final do ano, 251,7 milhões de euros. E para 2004 a única transferência a que o Governo se compromete é a que resultar da venda de créditos (no máximo 120 milhões de euros), muito aquém do mínimo de 614,8 milhões que deveria transferir. Para os menos atentos é preciso dizer que este Fundo é decisivo para o sistema ter uma reserva que lhe permita assegurar o pagamento de pensões durante dois anos. Ao descapitalizar o Fundo o Governo está a pôr em causa a segurança que o Estado deve dar aos cidadãos quanto à garantia futura das suas pensões de reforma, está a hipotecar o futuro do Sistema Público de Segurança Social. Não é por acaso que isto sucede. Esta política joga com os recentes discursos do Ministro Bagão Félix de dramatização da situação da Segurança Social para melhor ir criando as condições, no plano da opinião pública, para fazer avançar os Fundos de Pensões privados que beneficiam bancos e seguradoras, que beneficia objectivamente o seu antigo empregador, o BCP, entre outros.
Estamos pois a voltar aos tempos em que os descontos dos trabalhadores serviam para financiar outros subsistemas (protecção à família e acção social) que devem ser financiados por transferências do Orçamento do Estado.
Em ano de aumento da pobreza, como o próprio Governo reconhece, diminuem as verbas para o Rendimento Social de Inserção.
Mas mais. Os portugueses já perceberam que o Ministro Paulo Portas e o CDS-PP andaram a enganar os portugueses quando, na campanha eleitoral, prometeram pensões mínimas iguais ao salário mínimo. É verdade que o Ministro já teve o cuidado de se distanciar das promessas do presidente do seu partido de eleição. Mas também já percebemos que o Governo não vai cumprir, sequer, a sua segunda promessa inscrita na Lei de Bases. Para 2004, os aumentos das pensões mais degradadas não vão chegar para uma bica por dia.

Favorece descaradamente os interesses económicos e financeiros mais poderosos

A outra face desta moeda tem a ver com as opções do Governo em matéria de tributação do capital. Desce o IRC em cinco pontos percentuais (de 30% para 25%) com a justificação de que o País não tem competitividade fiscal. O argumento também poderia servir (e serve) para manter uma política de baixos salários como factor de uma falsa competitividade, em vez de se apostar numa economia e em empresas com mais valor acrescentado, maior sofisticação do produto final, melhor gestão, maior agressividade na conquista de quotas de mercado. Mas o argumento é falso. Desde logo porque Portugal já tem uma taxa nominal de IRC das mais baixas de toda a União Europeia, incluindo os países da adesão. Mas como sabemos ainda por cima a taxa efectiva de tributação em Portugal será de cerca de metade da taxa nominal, devido aos múltiplos benefícios fiscais existentes. Mas mais do que isso. Todo o investimento igual ou superior a 5 milhões de euros, nacional ou estrangeiro, relevante para o desenvolvimento dos sectores considerados estratégicos para a economia nacional e para a criação de emprego, beneficia de um regime contratual específico, negociado caso a caso, que já prevê a possibilidade de isenção ou forte diminuição do IRC. Portanto, o argumento do Governo para a descida do IRC não é verdadeiro. A verdade é que se destina unicamente a beneficiar a capitalização bolsista e a distribuição de dividendos aos maiores accionistas, enquanto se impõem enormes sacrifícios aos trabalhadores portugueses. Mas o que é verdadeiramente espantoso é que mesmo em matéria de tributação das empresas o Governo faz escolhas e não tem pudor em esconder as suas reais opções de classe. Beneficia as maiores. Penaliza as mais pequenas. É que enquanto promove a descida do IRC, que vai beneficiar sobretudo os maiores contribuintes, não repõe os benefícios de que gozavam as micro-empresas e diminui o valor máximo do Pagamento Especial Por Conta mantendo o limite mínimo, cujo aumento, em 2003, de 250%, sofreu a contestação legítima das pequenas empresas afectadas. Termina com os benefícios ao investimento que promovam a recuperação do investimento no interior do País e nas áreas em processo de desertificação o que questiona o alcance do próprio Programa para a Recuperação das Áreas e Sectores Deprimidos retirando o tapete ao Sr. Ministro da Economia que o apresentou com tanta pompa e entusiasmo.

E enquanto tudo isto nos é proposto nem uma palavra, nem uma medida, para o combate à fraude e evasão fiscal quando ainda recentemente o Governo acolheu a tese de um seu consultor, no âmbito do Projecto Portugal 2010, de que a agora eufemisticamente chamada “economia informal” (evasão fiscal, evasão a obrigações sociais, evasão a normas de mercado), é a principal barreira ao aumento global da produtividade. Ou ainda quando uma recente auditoria da Inspecção-geral de Finanças afirma que 50% das empresas identificadas no off-shore da Madeira não declaram qualquer volume de negócios, 42,5% não apresentam a declaração periódica de rendimentos para efeitos de IRC e que das empresas ali licenciadas só 33,3% é que a Administração Fiscal consegue identificar. Convenhamos que é obra, senhores deputados. E, por isso mesmo, deixamos aqui o desafio ao Governo e à maioria: aprovem, no próprio Orçamento do Estado, a proposta que já apresentámos para que até ao final do primeiro trimestre de 2004 o Governo proceda ao cruzamento de dados entre a Administração Tributária e a Segurança Social, acelerando-se o processo desde já, bem como a adopção de procedimentos visando o acesso da Administração Fiscal às informações protegidas pelo sigilo bancário.

Agrava a crise e aumenta o desemprego

Se a tudo isto somarmos a queda do investimento global do PIDDAC em 6,2%, com particular relevo para as funções sociais do Estado em matéria de Saúde e Educação e para sectores dinamizadores de todo o investimento como é o caso das obras públicas, dos transportes e comunicações – desmentindo assim as declarações do primeiro-ministro na Madeira – é caso para todos estarmos de acordo com o parecer do Conselho Económico e Social quando afirma que esta quebra do investimento público “em áreas fundamentais para o desenvolvimento nacional…acentua os atrasos estruturais do País e dificulta a retoma da economia portuguesa” e contribui igualmente para os preocupantes valores de execução dos projectos com financiamento comunitário. E é caso ainda para constatarmos a evidente ausência de coordenação e de compatibilidade entre as políticas sectoriais.
As consequências no emprego em resultado das opções do Governo são, por isso, inevitáveis: quando anuncia a recuperação da actividade económica diz-nos, no Orçamento, que vai aumentar o desemprego em 2004 colocando Portugal como o País da União Europeia onde mais tem crescido o desemprego. De acordo com os dados do IEFP, em finais de Setembro, tínhamos 440.000 desempregados registados, isto é 8,1% da população activa. Mas esta não é, de todo, preocupação do Governo.

Senhor Presidente,
Senhores deputados,

O Governo, e em particular alguns dos seus ministros, têm o hábito de desafiar a oposição a apresentar uma alternativa melhor.

Pois bem! Ela aqui vai, senhor Primeiro-ministro.

1.º - Concretizar uma estratégia de desenvolvimento e não de estagnação e recessão, em que a justiça social, a melhoria das condições de vida dos portugueses, seja o objectivo estratégico;

2.º - Investir antes de mais nos sistemas públicos de educação e formação, ciência e investigação saúde, justiça, segurança social, sectores estratégicos para o suporte de qualquer sociedade moderna sem os quais não haverá, de forma sustentada, nenhum aumento da produtividade e competitividade global do País;

3.º - Apostar no investimento público reprodutivo como elemento essencial para promover o crescimento económico, designadamente nas regiões mais frágeis, sem recursos endógenos suficientes e para funcionar como factor de arrastamento do investimento privado;

4.º - Modificar a distribuição do rendimento nacional, aumentando a parcela afecta aos rendimentos do trabalho, com melhoria dos salários e das pensões de reforma, e com isto aumentar o poder de compra dos portugueses, dinamizando o consumo e, por via disso, a actividade económica;

5.º - Apoiar a recuperação e a modernização do aparelho produtivo nacional – na indústria, na agricultura e nas pescas – cessando a sua destruição e a privatização de empresas e sectores estratégicos. Apostar em empresas e sectores de maior valor acrescentado. Promover-se uma política de substituição de importações com a promoção de marcas e produtos de qualidade, contrariando a crescente subcontratação e dependência da economia. Diversificar as nossas relações económicas externas;

6.º - Perceber que a par de grandes grupos económicos (que são obviamente necessários à economia portuguesa) o grosso das empresas são micro e pequenas e médias empresas que necessitam de uma política económica e fiscal própria. Neste quadro é necessária uma política fiscal selectiva, de estímulo a este segmento empresarial;

7.º - Combater de maneira decidida a fraude e a evasão fiscal e às contribuições sociais, factores de injustiça e de distorção dos mercados. O cruzamento de dados entre a Administração Fiscal e a Segurança Social e o acesso daquela às informações protegidas pelo sigilo bancário são questões decisivas;

8.º - Combater a burocracia; melhorar a estrutura organizativa e a eficácia da Administração Pública, respeitando e valorizando o seu capital mais precioso que são os seus trabalhadores;

9.º - Modificar o modelo de financiamento do Sistema Público de Segurança Social, através da manutenção das contribuições sobre o factor trabalho complementadas com a indexação das contribuições das empresas ao seu valor acrescentado. Com isto garante-se a sustentabilidade financeira da Segurança Social; asseguram-se condições para o pagamento de melhores prestações sociais e pensões de reforma; introduzem-se factores de equilíbrio concorrencial entre empresas de capital e de trabalho intensivo; promove-se a criação de emprego;

10.º - Combinar as exigências de rigor das contas públicas com a flexibilização da sua dependência de um deficit arbitrariamente definido.

Senhor Presidente,

Este Orçamento não serve o País. Este orçamento é errado e injusto. Criticámos. Apresentámos uma estratégia diferente, iremos apresentar propostas durante o debate na especialidade.

Fica demonstrado que a única via não é a que o Governo propõe. Há outras soluções. Outros caminhos. Outras opções.

Disse.