Tratado de Amsterdão
Declaração do deputado Carlos Carvalhas
6 de Janeiro de 1999

 

Senhor Presidente,
Senhores Deputados,

Numa situação que praticamente é a de factos consumados, com a população alheia ao que aqui hoje está na ordem do dia e num debate que mais parece uma daquelas cerimónias formais, com o PS e o PSD cada um a reivindicar quem mais contribuiu para que Portugal tivesse entrado para o clube do Euro e com um PP a dar o dito por não dito, e o não dito por dito, a Assembleia da República prepara-se para, quase sub-repticiamente deitar umas pazadas de terra e cal sobre o Escudo e a política monetária nacional e aprovar sem qualquer sobressalto de alma, o Tratado de Amsterdão.

Como esta "sessão" foi assim previamente definida e com o pouco tempo que nos foi atribuído, não vamos lembrar hoje que aqueles que se opuseram a que o povo português fosse consultado sobre o grande salto qualitativo que representou o Tratado de Maastricht, foram os mesmos que cozinharam numa vergonhosa revisão constitucional, a manutenção da inviabilidade de referendar qualquer coisa de substancial sobre a construção europeia (por exemplo, a moeda única e o Pacto de Estabilidade) apenas abrindo a porta ao pseudo-referendo sobre "questões europeias".

Nem vamos recordar que esses dois partidos durante mais de meio ano andaram a prometer solenemente que o Tratado de Amsterdão só seria debatido na Assembleia da República depois do povo se pronunciar maioritariamente no tal referendo nacional e sem nunca terem dito o que aconteceria se o "não" ganhasse!

Nem vamos hoje também gastar tempo com o facto de o mesmo secretismo e a mesma marginalização desta Assembleia da República se ter verificado nas negociações do agora congelado Acordo Multilateral de Investimentos, o célebre AMI e sobre o "pacote" negociado a 18 de Maio directamente por Tony Blair, o Comissário Leon Brittan e Madeleine Albright em relação ao PET (Parceria Económica Transatlântica), ou seja o acordo entre EUA e a UE ...

Nem nos vamos referir às pobres e frágeis economias da Inglaterra, Dinamarca e Suécia, que não estão como Portugal no "pelotão da frente do Euro"...

Queremos sim, neste momento em que PS e PSD se preparam para aprovar o novo Tratado da União Europeia, sublinhar duas questões.

A primeira é que a aprovação deste Tratado, com as cláusulas marcadamente neoliberais e monetaristas que lhe são inerentes e inserida como está numa lógica envergonhada mas efectivamente federalista, se verifica num quadro de uma grave situação da nossa agricultura, das nossas pescas e de importantes sectores e subsectores da nossa indústria, com um crescente domínio do capital estrangeiro e uma preocupante "derrapagem" na balança comercial e na balança de transacções correntes. Em que mesmo o crescimento económico que se tem verificado pode ficar comprometido, pois ao contrário do que se tem afirmado (nenhum dos países na União Europeia que ficaram fora do clube do Euro sofreu mais ou sofreu menos as consequências da crise), nem o Euro, nem a Europa nos tem protegido, nem nos protegerão se continuar o efeito de bola de neve da "crise financeira".

A segunda é que neste quadro, em que a nossa situação face ao exterior é de grande fragilidade e de vulnerabilidade e em que tenderá ser ainda maior face à liberalização do comércio da União Europeia com o resto do Mundo e ao alargamento comunitário a leste, se exige um novo rumo para a integração europeia.

A nossa posição crítica à marcha forçada para o Euro e ao rumo imposto à integração europeia é uma contribuição de esquerda e no quadro da integração para o debate que entendemos ser necessário e urgente sobre o futuro da União Europeia e é a posição de quem sempre tem procurado defender os interesses nacionais e procurado potenciar a posição negocial de Portugal como aliás foi reconhecido publicamente quer pelos Governos de Cavaco Silva, quer pelo actual Governo do PS.

E é também a posição daqueles que pensam que a perda de moeda própria e da possibilidade da utilização da taxa de câmbio nos torna muito mais vulneráveis para reagir a efeitos externos de perda de competitividade. E que a nossa prematura adesão ao Euro é ainda mais complexa, frágil e perigosa numa economia globalizada. Aliás a fixação do câmbio, do escudo em relação ao "Euro" já se traduziu numa nova revalorização da nossa moeda. E a tendência para um euro caro em relação ao dólar e ao yen atingirá de forma diferente as exportações alemãs e as portuguesas ... com o consequente reflexo no emprego e no tecido produtivo.

Posto isto queremos também dizer que não somos daqueles que mandando às urtigas tudo o que disseram anteriormente, se limitam a dizer agora - " AD oblige" - que "a realidade, hoje é o Euro e que só porque foram "críticos do processo no passado" não podem tomar hoje uma posição triunfalista.

É por isso que entendemos que no plano internacional Portugal deve juntar a sua voz àqueles que defendem uma urgente reforma do sistema monetário internacional e que, no quadro da União Europeia se deve aproveitar estes três anos de transição para o Euro como moeda de facto, para se acompanhar as consequências tomando as medidas que os interesses nacionais exigem e procurando simultaneamente alterar o rumo da integração, nos seguintes eixos que exemplificamos:

1 - Numa renegociação e alteração da lógica do "pacto de estabilidade", transformando-o num pacto de emprego e convergência real das economias; na modificação do papel do Banco Central Europeu e no seu controle pois esta instituição que tem poderes exorbitantes não pode estar acima das escolhas dos governos e dos parlamentos nacionais.

2 - Na concretização do princípio da coesão económica e social o que implica:

a) o nivelamento por cima e de forma progressiva das conquistas sociais alcançados nos diversos países europeus, no combate ao desemprego e ao trabalho precário, na redução do horário de trabalho sem perda de direitos e de salário;

b) a taxação das transacções financeiras e dos movimentos de capitais especulativos (taxa Tobin);

c) uma não diminuição dos fundos estruturais para os países com economias mais débeis bem como a criação de mecanismos, nomeadamente pelo financiamento da própria união que possam compensar os países como o nosso, que fiquem sujeitos a choques externos que lhe diminuem a competitividade da economia em geral ou de importantes sectores exportadores.

O nosso caso exige também um estatuto especial para a Região de Lisboa e Vale do Tejo no quadro de uma negociação global em relação aos fundos e uma reforma da Política Agrícola Comum que tenha em conta a especificidade da nossa agricultura.

3 - Na luta por mais democracia, combatendo os chamados défices democráticos, favorecendo mecanismos de intervenção acrescidos aos Parlamentos Nacionais e assegurando uma interpretação descentralizadora do princípio da subsidariedade, aproximando os cidadãos das decisões; aumentando os poderes do Parlamento Europeu com uma diminuição qualitativa das prerrogativas da Comissão e a preservação da possibilidade de recurso do direito de veto no Conselho desde que os interesses nacionais de um país estejam em causa.

4 - Nas medidas que dêem tradução ao respeito e valorização das culturas nacionais e ao diálogo e enriquecimento mútuo; à defesa dos equilíbrios ecológicos; à construção de uma Europa de solidariedade, de cooperação e de paz assente numa segurança colectiva confiada não à NATO mas a uma OSCE operativa e actualizada.

Estas são algumas das linhas que propomos sobre um novo rumo, para a "construção europeia"; sobre uma reorientação progressista que rejeite o fundamentalismo neoliberal, as concepções nacionalistas e xenófobas, que não aceite como uma fatalidade a acentuação das desigualdades sociais e regionais, e que se indigne perante os milhões de desempregados e de pobres, que esta "construção" tem produzido. Uma "construção europeia" que responda no concreto, não aos interesses egoístas do capital financeiro, mas às aspirações dos trabalhadores e dos povos europeus e à cooperação e solidariedade internacional.