16 perguntas e 16 respostas sobre o regime jurídico do aborto em Portugal
Comissão junto do CC para os problemas e movimento das mulheres
27 de Janeiro de 2004

1-Qual é o actual regime jurídico do aborto em Portugal?

O aborto (ou interrupção voluntária da gravidez) é definido pelo Código Penal como crime contra a vida intra-uterina (artºs 140º e 141º). O Código fixa ainda as situações em que é admissível (artº 142º). Assim:

- quem fizer uma mulher abortar:
. sem o seu consentimento – pena de prisão de 2 a 8 anos (artº 140º/nº1);
. com o seu consentimento – pena de prisão até 3 anos (artº140º/nº2).
. os limites da pena aplicável são aumentados de um terço quando do aborto ou dos meios empregados resultar a morte ou uma ofensa à integridade física da mulher grávida, ou quando o agente se dedicar habitualmente à prática de aborto, ou quando o realizar com intenção lucrativa (artº 141º/nºs 1 e 2).

- a mulher grávida que abortar é punida com pena de prisão até 3 anos (artº 141º/nº3).As pessoas que ajudarem a mulher (amigos, familiares, outros) podem vir a ser julgadas por cumplicidade (artº 27º do Código Penal). Se a sentença aplicar uma pena de prisão em medida não superior a 6 meses é substituída por pena de multa ou por outra pena não privativa da liberdade (artº 44º do Código Penal).

- o aborto é um crime público, ou seja o procedimento judicial não está dependente de qualquer queixa prévia.

- o aborto não é punível quando (causas de exclusão da ilicitude – artº 142º) for efectuado por médico, ou sob a sua orientação, em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido, com o consentimento da mulher grávida quando:
a) constituir o único meio de remover perigo de morte ou de grave e irreversível lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida ou casos de fetos inviáveis (sem limite de tempo);
b) se mostrar indicado para evitar perigo de morte ou de grave e duradoura lesão para o corpo ou para a saúde física e psíquica da mulher grávida e for realizada nas primeiras doze semanas de gravidez;
c) houver motivos seguros para prever que o nascituro virá a sofrer, de forma incurável, de doença grave ou malformação congénita (aborto eugénico), e for realizado nas primeiras 24 semanas;
d) a gravidez tenha resultado de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual (por exemplo, violação) e a interrupção for realizada nas primeiras 16 semanas.

2-A despenalização do aborto colide com o disposto no artº 24º da Constituição da República Portuguesa (CRP)?

Não, não colide. O artº 24º da CRP (“Direito à vida”), no seu nº1, determina “1. A vida humana é inviolável.” Face à Constituição o direito à vida abrange o direito de não ser privado da vida (implicando, por exemplo, a proibição da pena de morte e a punição do homicídio), o direito à protecção e ao auxílio contra a ameaça ou perigo de morte, e o direito à sobrevivência, ou seja o direito a viver com dignidade (nomeadamente direito ao trabalho, direito à protecção social, direito à habitação).

Sobre a questão da protecção da vida intra-uterina dizem-nos Gomes Canotilho e Vital Moreira, na sua Constituição da República Portuguesa anotada (2ªed., revista e ampliada, Coimbra Editora,1984, 1º vol, pág.191):

“(...) Enquanto bem ou valor constitucionalmente protegido, o conceito constitucional de vida humana parece abranger, não apenas a vida das pessoas, mas também a vida pré-natal, ainda não investida numa pessoa, a vida intra-uterina (independentemente do momento em que se entenda que esta tem início). É seguro, porém, que: a) o regime de protecção da vida humana, enquanto simples bem constitucionalmente, não é o mesmo que o do direito à vida, enquanto direito fundamental das pessoas, no que respeita à colisão com outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos (v.g., vida, saúde, dignidade, liberdade da mulher); b) a protecção da vida intra-uterina não tem que ser idêntica em todas as fases do seu desenvolvimento, desde a formação do zigoto até ao nascimento; c) os meios de protecção do direito à vida – designadamente os instrumentos penais – podem mostrar-se inadequados ou excessivos quando se trate da protecção da vida intra-uterina.(...)”

3-Face à lei, quando é que se adquire personalidade jurídica (susceptibilidade de ser titular de direitos e obrigações) ?

Nos termos do nº 1 do artº 66º do Código Civil :“A personalidade adquire-se no momento do nascimento completo e com vida”. A lei reconhece alguns direitos aos nascituros (seres humanos cujo nascimento futuro se prevê como possível, quer se encontrem já concebidos quer não) que, no entanto dependem do seu nascimento (nº2 do artº 66º do Código Civil: “Os direitos que a lei reconhece aos nascituros dependem do seu nascimento.”


4-O que significa descriminalização e despenalização?

Criminalizar um comportamento significa considerá-lo como crime e em consequência a possibilidade de aplicação de uma pena de prisão. Descriminalizar um comportamento significa que ele deixe de ser considerado crime e como tal de ser punível, ou seja de lhe ser aplicável uma pena. De referir contudo que, um comportamento pode deixar de ser crime e continuar a ser ilícito, sendo-lhe aplicável outro tipo de sanções sem natureza penal (caso das contra-ordenações – ver questão seguinte).

Despenalizar um comportamento significa que deixa de se verificar a possibilidade de aplicar uma pena a um dado comportamento. Isso acontece sempre que se verifica a sua descriminalização, ou seja se deixar de ser crime. Contudo há quem se refira à despenalização num sentido mais estrito: certos comportamentos que continuam a ser qualificados como crimes pela lei penal mas que, por se verificar, por exemplo, a exclusão da ilicitude do acto, deixam de ser punidos (por exemplo, o aborto não é punido em caso de violação). Contudo, em bom rigor jurídico o que acontece nestas situações é que desaparece um elemento essencial para definir um comportamento como crime: a ilicitude do acto (ou seja, pegando no mesmo exemplo, o aborto resultante de violação não é crime, por força da exclusão da sua ilicitude, e em consequência não lhe é aplicável qualquer pena).

5-Há quem fale na possibilidade de o aborto passar a ser considerado uma contra-ordenação. Qual é o significado desta proposta?

Significa que deixaria de estar previsto no Código Penal. Teria de existir uma lei que classificasse o aborto como contra-ordenação e definisse o respectivo regime legal . O regime geral das contra-ordenações está previsto no Decreto-Lei nº 433/82, de 27.10, revisto pelos D.L nº 356/89, de 17.10, DL nº 244/95, de 14 .09 e Lei nº 109/2001, de 24.12). O aborto deixaria de ser crime, mas continuaria a ser um facto ilícito (e, como tal, proibido) ao qual seria aplicável uma coima, que é sempre uma pena pecuniária (ao contrário das multas, as coimas em caso algum podem implicar a privação da liberdade, pois a estas nunca corresponde prisão em alternativa; as coimas podem, contudo, a requerimento do condenado serem substituídas por trabalho a favor da comunidade). As contra-ordenações correspondem basicamente a condutas que apesar de não constituirem ofensas graves aos bens essenciais da vida em comunidade são, no entanto, merecedoras de sanções. O aborto continuaria a ser um facto ilícito, mantendo-se a perseguição das mulheres que a ele recorressem

6-Bagão Félix, entre outros, tem vindo a afirmar que as mulheres não deveriam ir para a prisão mas sim ser condenadas, para expiar a sua culpa, a trabalho comunitário em instituições sociais de apoio a crianças abandonadas e similares. O que pretendem dizer com isso?

Em primeiro lugar e objectivamente significa que consideram que o aborto deve continuar a ser crime e que as mulheres que o praticarem devem ser investigadas, sujeitas a julgamento e condenadas. Contudo, quanto à pena pensam que seria melhor em vez de as mandar para a prisão ou aplicar uma multa sujeitá-las a trabalho comunitário. Dado que este já está previsto actualmente no Código Penal, pode ser que um dos objectivos destas declarações seja criar o ambiente psicológico para que as pessoas pensem que se os tribunais não aplicarem a pena de prisão a situação já não é tão gravosa e, por outro lado, pressionar os tribunais para que substituam a pena de prisão pelo trabalho comunitário.

A “prestação de trabalho a favor da comunidade” está prevista no Código Penal (artº 58º). Se a sentença aplicar uma pena concreta de prisão não superior a 1 ano, o tribunal substitui-a por prestação a favor da comunidade se concluir que assim se realizam as finalidades da punição, de forma adequada e suficiente e se o condenado a aceitar. De notar, contudo, que se o condenado não cumprir as obrigações a que ficou adstrito ficará sujeito ao cumprimento da pena de prisão inicial, nos termos fixados na lei.

7-Há quem fale em punir severamente os médicos, parteiras e outros que pratiquem o aborto e em compreensão e alguma tolerância para com as mulheres. O que pretendem, na verdade, afirmar com declarações deste tipo?

Compreensão e tolerância não têm qualquer significado em termos da lei penal, pois o aborto continua a ser criminalizado, as mulheres a serem investigadas, julgadas e condenadas. No fundo, além da demagogia subjacente, está-se a pedir apenas alguma clemência aos tribunais para com as “mulheres criminosas”.

Punir severamente os médicos, parteiras e outros que pratiquem o aborto até pode soar bem porque parece que se está a combater negócios lucrativos. Só que a verdade é que esses negócios existem, e muitas vezes com grave perigo para a saúde da mulher, precisamente porque se teima em penalizar o aborto, em mantê-lo clandestino. A perseguição policial e judicial sobre “a oferta” pode ser uma forma de impedir que as mulheres façam abortos por não terem aonde os ir praticar; apenas as mulheres com mais possibilidades económicas se poderão deslocar ao estrangeiro. Desde que este Governo tomou posse intensificaram-se esse tipo de acções repressivas que podem ter efeitos incalculáveis para as próprias mulheres.

A solução é a alteração urgente do Código Penal de modo a permitir a despenalização do aborto, a pedido da mulher, até às 12 semanas para uma maternidade consciente, assegurando que todas as mulheres tenham acesso a serviços de saúde de qualidade e seguindo as normas técnicas definidas pela Organização Mundial de Saúde para a prestação de cuidados de aborto: exame médico prévio, a informação e aconselhamento para uma decisão informada e livre, a informação sobre procedimentos de aborto, o período de recobro e o acompanhamento médico pós-aborto, o fornecimento de contraceptivos e as instruções dos cuidados pós-aborto, a informação e aconselhamento sobre contracepção e prevenção das doenças sexualmente transmissíveis. É necessário que a lei seja rigorosamente cumprida nos estabelecimentos públicos de saúde ou oficialmente reconhecidos.

8-Há quem defenda que é necessário despenalizar o aborto, retirando-o pois do Código Penal, porque o Estado não se deve meter nas opções éticas de cada um e em consequência o Estado não deverá pagar as despesas dessa decisão através do Serviço Nacional de Saúde (porque estariam a ser usados impostos de pessoas que são contra o aborto). A “solução política” seria permitir o funcionamento de clínicas privadas, onde o custo do aborto seria sempre suportado pelas próprias mulheres. O que pensar desta solução?

À partida parece uma solução atraente porque, pelo menos, as mulheres deixam de ser criminalizadas. No entanto significaria o florescimento de um negócio em larga escala, já que um dos objectivos das clínicas privadas é o lucro. As mulheres com menos recursos seriam as principais prejudicadas por esta solução. Todo o resto da argumentação é demagógica e inaceitável. O argumento dos impostos é falacioso, na medida em que todos pagamos impostos que são aplicados em coisas com as quais não concordamos, e os defensores da despenalização do aborto também pagam impostos! Por outro lado se o comportamento não é censurável do ponto de vista jurídico não se percebe porque razão os estabelecimentos de saúde públicos não o devem fazer. Não é porque alguns cidadãos têm motivos ético-religiosos que deve ser interdito nesses serviços a todas as pessoas que o desejarem. A aplicação deste critério e a possibilidade da sua extensão a muitos outros aspectos (por exemplo, esterilização voluntária da mulher, transfusões de sangue, utilização de células embrionárias para efeitos terapêuticos) pode ter efeitos perniciosos e não é digno de um Estado de Direito.

É necessário que o Estado garanta o acesso ao aborto nos estabelecimentos públicos de saúde e, que no caso da mulher recorrer a um estabelecimento privado por impossibilidade de resposta em tempo útil dos serviços públicos não tenha de pagar as despesas do seu bolso. Isto não impede, como é obvio, que qualquer mulher possa recorrer a uma clínica privada directamente, se fôr esse o seu desejo.

É também necessário que a actividade dos estabelecimentos de saúde privados oficialmente reconhecidos para a prática de aborto seja objecto de regulamentação específica (à semelhança, do que acontece, por exemplo, em Espanha), que garanta que são observados os protocolos necessários à protecção da saúde da mulher e respeitem as recomendações internacionais, nomeadamente as da OMS.

9-É verdade que Portugal e a Irlanda são os países da União Europeia com a legislação mais restritiva?

Sim é verdade. A Irlanda é o único país da União Europeia onde o aborto é, face à lei, proibido em qualquer circunstância. De referir que quando a Irlanda assinou, em 1992, o Tratado de Maastrich, recebeu a garantia de que as suas leis restritivas em matéria de aborto não seriam afectadas. Portugal não contempla as razões económicas e sociais como causa para a mulher realizar um aborto, ao contrário do que acontece com a esmagadora maioria dos outros países europeus. Por outro lado, a interpretação da actual lei pelos serviços médicos é demasiado restritiva o que justifica o baixo número de abortos efectuado ao abrigo da lei.

10-É verdade que, no que respeita ao aborto, a lei penal portuguesa e a lei penal espanhola, são bastante similares, só que em Portugal ela é aplicada de forma muito restritiva ?

Na verdade a lei penal espanhola tem aspectos até mais restritivos que a lei portuguesa como por exemplo os prazos para aborto eugénico (22 semanas) ou na sequência de violação (12 semanas). Contudo, enquanto os serviços públicos de saúde fazem uma interpretação mais restritiva da lei, assim já não acontece com as clínicas privadas aonde se faz a larga maioria das IVGs em Espanha. De destacar que a lei espanhola não pune as mulheres que recorram ao aborto clandestino nos casos em que esse aborto tenha sido praticado pelos motivos que a lei permite (no entanto, os médicos, parteiras e outros, são punidos). De assinalar que, desde Fevereiro de 2000, foi autorizada em Espanha a utilização da pílula abortiva (Ru-486) nos serviços de saúde públicos, possibilitando a rapidez de atendimento nestes serviços. Está também regulamentada por lei a forma como se processa a acreditação de estabelecimentos de saúde privados para efeitos da prática da IVG e as exigências que são efectuadas (especialistas, instalações, práticas médicas a seguir, etc...).


11-Quais são as propostas sobre a interrupção voluntária da gravidez incluídas no projecto-lei do PCP (projecto-lei nº 1/IX)?

As propostas incluídas no projecto-lei do Partido são as seguintes:

- a despenalização da IVG nas primeiras 12 semanas, a pedido da mulher, para garantir o direito a uma maternidade consciente e responsável;
- nos casos de mãe toxicodependente, o alargamento do período até às 16 semanas;
- no caso de o nascituro estar afectado pelo HIV, o aborto (eugénico) poderá ser realizado até às 24 semanas (situação já compreendida na actual lei, mas que se entendeu ser necessário explicitar dadas algumas resistências ainda existentes relativamente à aplicação da lei enstes casos);
- o alargamento de 12 para 16 semanas do prazo, nos casos em que a IVG se mostre indicada para evitar perigo de morte ou de grave lesão para o corpo ou saúde física da mulher grávida;
- o alargamento para as 24 semanas no caso de vítimas de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, quando menores de 16 anos ou incapazes por anomalia psíquica;
- a obrigação de organização dos serviços hospitalares, nomeadamente dos distritais, por forma a que respondam às solicitações de prática da IVG;
- a impossibilidade de obstruir o recurso à IVG, através da previsão da obrigação de encaminhar a mulher grávida para outro médico não objector de consciência ou para outro estabelecimento hospitalar que disponha das condições necessárias à prática da IVG;
- a despenalização da conduta da mulher que recorra à IVG fora dos prazos e das condições estabelecidas na lei;
- obrigação para a instituição onde se tiver efectuado a IVG de providenciar que a mulher, no prazo máximo de sete dias, tenha acesso a uma consulta de planeamento familiar.


12-Quais as recomendações internacionais mais recentes no que respeita ao aborto?

Diversas entidades, entre as quais a ONU, a Organização Mundial de Saúde, o Fundo das Nações Unidas para a População, a Associação Internacional para o Planeamento da Família, o Parlamento Europeu, têm vindo a alertar para as consequências do aborto clandestino na saúde das mulheres.

O CEDAW (Comité das Nações para a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres), na sua 26ª Sessão, realizada entre 14 de Janeiro e 1 de Fevereiro de 2002, recomendou a Portugal:

“42. O Comité está preocupado com as leis de aborto restritivas em vigor em Portugal, em particular porque os abortos clandestinos têm sérios impactos negativos na saúde das mulheres e no seu bem-estar.
43. O Comité insta o Estado membro (Portugal) para que facilite o diálogo nacional sobre a saúde reprodutiva das mulheres, incluindo sobre as leis restritivas de aborto. Solicita também ao Governo para que promova a melhoria dos serviços de planeamento familiar, assegurando a sua disponibilidade a todas as mulheres e homens, incluindo adolescentes e jovens. O Comité solicita ao Estado membro que inclua informação no seu próximo relatório sobre mortes e/ou doenças relacionadas ou consequência de aborto clandestino.”

O Parlamento Europeu aprovou, em 3 de Julho de 2003, uma resolução sobre direitos em matéria de saúde sexual e reprodutiva da qual destacamos:

“12. Recomenda que, a fim de salvaguardar a saúde reprodutiva e os direitos das mulheres, a interrupção voluntária da gravidez seja legal, segura e universalmente acessível;
13. Exorta os governos dos Estados-membros e dos países candidatos à adesão a se absterem, em quaisquer circunstâncias, de agir judicialmente contra mulheres que tenham feito abortos ilegais;”.

13-Em 28 de Junho de 1998 realizou-se um referendo sobre o aborto. Pode a Assembleia da República retomar a iniciativa legislativa e aprovar um projecto-lei sobre a matéria?

Não há nada na lei que o impeça. O referendo de 1998 não teve eficácia vinculativa dado que só votaram 31,9% dos eleitores. A Lei nº15-A/98, de 3 de Abril (Lei Orgânica do Referendo) determina no seu artº 240º que: “O referendo só tem efeito vinculativo quando o número de votantes for superior a metade dos eleitores inscritos no recenseamento.”A Assembleia da República pode, pois, aprovar um projecto-lei referente à despenalização do aborto quando o entender.

14-Em 1998, era obrigatória a realização de um referendo sobre o aborto ?

Na Constituição e na lei não há nada que obrigue à realização de um referendo sobre as questões do aborto. O insólito verificado foi que, após a aprovação pela Assembleia da República, na generalidade, de um projecto-lei do PS (com os votos do PCP) que previa o aborto legal até às 10 semanas, a pedido da mulher, o PS (António Guterres) e o PSD (Marcelo Rebello de Sousa) assinaram, horas depois, um vergonhoso acordo prevendo a realização do referendo, num acto de profundo desrespeito por aquele órgão de soberania e pelos deputados.

15-A entrega na Assembleia da República (AR) de 75 mil assinaturas de cidadãos eleitores requerendo a realização de um referendo obrigam à realização deste?

Não, face à Lei nº 15-A/98, de 3 de Abril – Lei Orgânica do Regime do Referendo. Após a recepção da iniciativa, o Presidente da AR pede à Comissão competente em razão da matéria parecer sobre a iniciativa do referendo, para o que fixará um prazo. Recebido o parecer da Comissão, o Presidente da AR decide da admissão da proposta. Se houver admissão a iniciativa é enviada à comissão parlamentar competente que ouvirá o representante do grupo de cidadãos eleitores, para os esclarecimentos julgados necessários à compreensão e formulação das questões apresentadas. Após admissão, a iniciativa popular é publicada no Diário da AR. A iniciativa popular, depois de outras diligências, é obrigatoriamente apreciada e votada em Plenário da AR. Desta apreciação resulta a aprovação ou rejeição pela AR da realização do referendo.

No caso de aprovação toma a forma de Resolução a ser publicada em Diário da República, após o que é submetida pelo Presidente da República (PR) ao Tribunal Constitucional que verificará a constitucionalidade e legalidade da proposta. No caso destas se verificarem, é da competência do PR tomar a decisão de convocar ou não o referendo. Se decidir convocá-lo terá de ter lugar entre o 60º e o 90º dias após a publicação do decreto do PR.

Cada referendo recai sobre uma só matéria, não podendo comportar mais de três perguntas. O referendo, seja qual for o resultado, só tem efeito vinculativo quando o número de votantes for superior a metade dos eleitores inscritos no recenseamento eleitoral.

16-Mas porque razão o PCP não considera necessária a realização de um referendo antes da apreciação da questão pela Assembleia da República?

Como já se afirmou não há nada na Constituição nem na lei que obrigue à realização de um novo referendo. A Assembleia da República é um órgão de soberania, eleito democraticamente, que tem face à Constituição toda a legitimidade e competência para aprovar um projecto-lei sobre a matéria referente ao aborto.

Sobre esta questão transcreve-se parte da Nota da Comissão Política do PCP, de 21.11.2003, “Sobre os direitos sexuais e reprodutivos e a luta pela despenalização do aborto”:

“6. Como o provou no passado, preferindo que o primeiro passo seja a tentativa de aprovação na AR de uma lei de despenalização do aborto, o PCP não exclui travar nenhuma outra batalha, mesmo que não corresponda às suas opções e preferências.

Mas o PCP espera que outras forças e personalidades compreendam que, por razões de coerência, o PCP não pode passar a empunhar a bandeira do referendo sobre IVG que foi a do PSD e a do PS há cinco anos, e que o PCP e tantos outros sectores e personalidades vivamente combateram. Não pode alinhar-se pela teoria absurda - e sem nenhum fundamento constitucional – de que, uma vez feito um referendo (que, naquele caso, nem sequer teve efeito vinculativo), só por novo referendo se poder decidir sobre a matéria, nem contribuir para a negação, explicíta ou implícita, da inequívoca legitimidade que a AR mantém para legislar sobre a interrupção voluntária da gravidez.

Entretanto, o PCP chama ainda a atenção que a colocação de um novo referendo como prioridade de acção política e reivindicativa não deixará de ser usada para reforçar as teses que negam à Assembleia da República a capacidade, legitimidade e responsabilidade de poder vir a aprovar um projecto-lei de despenalização do aborto.”