Declaração política sobre a democratização do acesso dos portugueses à informação e ao conhecimento e o registo de patentes sobre essas áreas
Intervenção de Bruno Dias
26 de Maio de 2004

 

Senhor Presidente,
Senhoras e Senhores Deputados,

Uma incontornável questão que se coloca nos nossos dias, a exigir reflexão e medidas concretas, é a democratização do acesso dos portugueses à informação e ao conhecimento. Aliás, por essa via coloca-se mesmo a questão maior do aprofundamento da democracia – e da democracia, tal como a entendemos, nas suas vertentes cultural, social, económica, política, e da própria soberania nacional.

Antes de mais, não podemos submeter Portugal à pouco edificante condição de consumidor de tecnologias – porque o software não é só um serviço: ele é desde logo um meio de produção. Por isso Portugal tem de ser também um produtor de soluções, assumindo uma estratégia de incorporação da tecnologia nas estruturas do aparelho produtivo nacional.

E não será certamente esse o cenário que teremos se continuar a ser seguida a linha de rumo que hoje verificamos, com esta tendência para a mercantilização do conhecimento (designadamente ao nível da política de patentes de software); ou para esta opção em fechar a porta a soluções alternativas ao actual quadro dominante do dito software proprietário.

Não pode ser nesse sentido que as decisões políticas devem ser direccionadas. Desde logo no contexto actual, em que as instituições da União Europeia passam discretamente por um processo de discussão e decisão absolutamente determinante para o futuro deste sector. Falamos da questão das patentes do software.

Mesmo o chamado software livre está neste processo perante uma encruzilhada. Constituindo hoje um poderoso movimento no campo do software, e na defesa da universalidade do direito do acesso à informação, o software livre ver-se-á especialmente ameaçado caso seja generalizado o registo de patentes.

No limite, corremos o risco de ver a escrita de programas como a construção de um puzzle, em que cada peça está sujeita a pelo menos uma patente registada. E a experiência dos EUA demonstra que se pode abrir uma verdadeira caixa de Pandora, levando inevitavelmente a um permanente recurso aos tribunais.

Aliás, este frenético recurso ao aparelho judicial é a pedra de toque dos mecanismos de concentração capitalista. Nenhuma pequena empresa se pode dar ao luxo de discutir em tribunal uma questão de patentes com uma IBM ou uma Adobe. Mesmo que resista aos meses ou anos que o processo vai durar pelos tribunais, será imediatamente ameaçada de ter violado, na escrita dos seus programas, milhares de outras patentes (só a Microsoft detém mais de 30 mil!), o que corresponderia a um custo judicial muitas vezes superior à sua capacidade financeira.

E o que se coloca às empresas coloca-se ainda com mais acuidade ao campo do ensino e da investigação. Pois se já hoje os estudantes do ensino superior público pagam propinas para que as universidades e politécnicos paguem despesas de funcionamento, imagine-se o que seria ter estas instituições confrontadas com a hecatombe financeira dos pagamentos de patentes!

O que tudo isto nos vem provar é que as patentes sobre software serão, não um incentivo, mas um real obstáculo à inovação e ao desenvolvimento.

A História americana recente mostra-nos que basta que as condições assim o exijam para que até resultados da matemática sejam considerados segredo de Estado, e que os próprios autores sejam acusados de exportar «armamento» quando publicam os seus resultados além fronteiras. Tal como não estamos assim tão longe de ver resultados da genética passíveis de patentes – isto é, da patenteabilidade da própria vida.

O conceito de que o conhecimento é um bem universal e como tal deve estar livre para o usufruto de toda a Humanidade não é compatível com o do

É neste contexto que significativas movimentações se desenvolvem, em Portugal, na Europa e no Mundo, dando voz comum a um protesto e corpo a um combate contra a criação destas patentes.

Mas a este propósito, e apesar das vozes que se levantam nesse combate, verificamos afinal que a falta de seriedade com que o Governo tem conduzido os processos de discussão pública sobre esta matéria é mais digna do anedotário nacional do que propriamente de quaisquer conceitos de participação e democracia.

Chegaram inclusivamente ao Grupo Parlamentar do PCP testemunhos segundo os quais o Instituto Nacional da Propriedade Industrial terá transmitido em sede comunitária um suposto “consenso nacional” absolutamente espantoso, a favor das patentes de software – sendo dado como certo que nenhum cidadão português detém nenhuma das cerca de 30.000 patentes de software atribuídas pelo Gabinete Europeu de Patentes, pelo menos até ao ano passado.

Ora, tal “consenso” a favor das patentes de software terá sido alcançado através de uma consulta conduzida pelo INPI em 2001, e que consistiu no envio de um ofício, afirmando uma posição de defesa das patentes de software, e que foi enviado por aquele Instituto para dezanove directores de empresas, tendo recebido três respostas – as quais manifestavam apoio à posição desse Instituto!

Se é isto que o Governo considera consenso nacional, se é isto que o Governo considera um processo sério de discussão pública, estamos esclarecidos. O que nos falta saber é se este processo fica mesmo por aqui, ou se pelo contrário o Governo tomou alguma medida para que esta discussão seja digna desse nome.

Nesse sentido, apresentamos um Requerimento ao Governo, confrontando o Senhor Ministro da tutela com esta situação, pedindo-lhe esclarecimentos, e perguntando se já foi – ou vai ser – reaberto o processo de consulta pública sobre esta matéria.

Por outro lado, Senhor Presidente e Senhores Deputados, o Grupo Parlamentar do PCP apresenta hoje, na Mesa da Assembleia da República, um Projecto de Resolução recomendando ao Governo uma acção efectiva em sede de Conselho Europeu, recusando as patentes de software e a mercantilização do conhecimento.

Feita no Parlamento Europeu a votação, em primeira leitura, da proposta de Directiva Comunitária que abriu a discussão sobre o registo destas patentes, está agora nas mãos do Conselho, e dos governos que representam os estados-membros, a salvaguarda deste princípio fundamental.

Para nós, está em causa nesta discussão o problema da liberdade de escolha – uma liberdade que é afirmada na legislação que existe, mas que não é exercida. Não pretendemos impor soluções, quaisquer que sejam, mas é preciso impedir a sistematização das más soluções, que é o que tem acontecido até hoje.

Por isso apresentamos, também nesta ocasião, uma outra iniciativa: um Projecto de Resolução que visa propor um conjunto de medidas concretas para o desenvolvimento do software livre. Não pretendemos que por decreto se avance para sistemas indiscriminados que careçam de sustentação. Mas consideramos indispensável que se avance em projectos concretos, que se crie as condições técnicas, para que no plano educativo, científico, cultural e económico se abra caminho à introdução desta alternativa.

Temos a convicção de que, na actualidade, desde que em igualdade de circunstâncias, desde que sem discriminações, o software livre tem demonstrado melhores respostas do que muitos exemplos do software proprietário.

É preciso tomar medidas para que o país exerça e cultive essa liberdade, essa exigência, esse rigor na escolha de soluções no caminho de um desenvolvimento integrado e sustentável.

Pela nossa parte, o PCP apresenta aqui um contributo, uma proposta e um desafio. Partindo de uma concepção humanista, de progresso e desenvolvimento, afirmando de forma clara princípios fundamentais para o aprofundamento da própria democracia, deixamos aqui propostas concretas, sustentadas, cuja concretização é possível e necessária.

Porque mais importante que os consensuais diagnósticos, é indispensável passar à prática e tomar medidas.

Disse.