Sessão Solene Comemorativa do 25º Aniversário do 25.Abril
Intervenção do deputado Lino de Carvalho
25 de Abril de 1999

 

Senhor Presidente da República
Senhor Presidente da Assembleia da República
Senhores Deputados
Senhor Primeiro-Ministro
Senhores Presidentes do Supremo Tribunal de Justiça e do Tribunal Constitucional
Senhoras e Senhores Convidados
Homens e Mulheres de Abril,

Faz hoje 25 anos. Sensivelmente a esta mesma hora. Sentado na borda da cama de um quarto-prisão do Hospital Miguel Bombarda, para onde havia sido transferido de Caxias, ás ordens da PIDE, ouvi, do outro lado da janela, no pátio, alguém gritar "Marcelo caiu". Tendo em conta o local onde estava, e apesar das informações existentes, dei comigo a pensar que se tratava de um caso psiquiátrico. Afinal não era. A liberdade, duramente conquistada, entrava-nos finalmente portas e janelas dentro. Até hoje.

Ao comemorarmos este quarto de século em liberdade acodem-me á memória os nomes e as imagens dos que com a sua luta, o seu sacrifício e o sacrifício dos seus familiares, por vezes a morte; na prisão, na clandestinidade ou no exílio, construíram as estradas que fizeram a LIBERDADE. Comunistas, meus camaradas de Partido, seguramente, mas também republicanos, socialistas, católicos, radicais de esquerda. Estudantes, operários, assalariados agrícolas do Alentejo, camponeses, intelectuais. Povos das então colónias em luta pela independência. Mulheres e Homens. Todos – mas todos – desde os mais mediatizados e para sempre registados nas páginas da bibliografia de Abril até aos mais anónimos militantes da liberdade, com a sua luta, com a sua intervenção, construiram as "portas que Abril abriu". Todo um povo que deve ser convocado á nossa memória, á nossa homenagem, nesta hora e que constituiu o fermento que adubou o campo onde floresceu a consciência dos militares, "dos capitães de Abril", que organizados no Movimento das Forças Armadas, arrombaram e escancararam as portas da liberdade e da democracia. Porque, como recordava Ary dos Santos, "Quem o fez era soldado / homem novo capitão / mas também tinha a seu lado / muitos homens na prisão". A eles, a todos eles, as nossas mais intensas saudações.

Tanto mais necessárias quanto, numa época de memórias dissolvidas e seleccionadas na diária mediatização da História, alguns, muitos, procuram branquear o passado e os responsáveis desse passado. Contra esse branqueamento, pela formação cívica das gerações posteriores, e para que não volte, é preciso reafirmar sempre e sempre que O FASCISMO EXISTIU EM PORTUGAL. Que o nosso País foi palco de perseguições, de prisões por delito de opinião, de torturas, de censura, de guerra colonial, de proibições muitas. E que o fim do fascismo não foi dádiva do regime, não foi o resultado de um simples "piparote". Foi o resultado de muita luta, muito sangue, muita coragem cívica, muita paixão. Como dizia Hegel, "nada de grande se faz sem paixão".

Sr. Presidente da República,
Sr. Presidente da Assembleia da República,
Srs. Deputados,
Srs. Convidados,

Valeu a pena a luta pela liberdade e pelas liberdades. Mesmo quando muitas das esperanças de Abril estão por construir. Mesmo quando o emprego com direitos não é um direito efectivo de todos e está quotidianamente ameaçado nos locais de trabalho e na legislação laboral do Governo. Mesmo quando a pobreza e a marginalidade alastram, apesar do Rendimento Mínimo Garantido. Mesmo quando mais de 70% dos reformados continuam a ter de viver com pensões inferiores a 32.800.00 Mesmo quando as mulheres e os jovens continuam a ser descriminados. Mesmo quando se agrava a injusta distribuição da riqueza para valores idênticos aos anteriores a 25 de Abril. Mesmo quando o pensamento único, neo-liberal (por vezes polvilhado com contristadas devoções fingidas) domina os modelos de Estados e Governos socialistas e sociais-democratas impondo a desvalorização das políticas públicas, tudo submetendo á lógica da competitividade a todo o preço, da privatização e do lucro. Mesmo quando, por isso mesmo, a sociedade hoje não é a sociedade da solidariedade com que sonhámos.

Apesar de todos estes défices valeu a pena, valeu incontestavelmente a pena, fazer Abril. Porque não há nenhum bem mais precioso que a LIBERDADE, sem a qual não há democracia política.. E porque, em liberdade, melhor se pode lutar pela democracia económica, social e cultural que ambicionamos.

Mas as celebrações deste quarto de século em liberdade ficam marcadas, estão marcadas, por factos dolorosos da maior gravidade. A brutal e irresponsável guerra de agressão dos EUA, da União Europeia e da NATO contra a Jugoslávia. A continuação da guerra em Angola, movida por Savimbi, em violação das resoluções da ONU. A violência, os massacres, a brutalidade, da Indonésia contra o povo de Timor Leste.

Está hoje cada vez mais claro, designadamente para aqueles que de boa fé ainda concediam o benefício da dúvida, que a guerra não está a resolver nenhum dos problemas que alegadamente se propunha resolver e, pelo contrário está a agravá-los todos. Violando a legalidade internacional, violando a Carta das Nações Unidas, milhares de toneladas de bombas destroem, colateralmente, cidades, fábricas, edifícios residenciais, pontes, escolas, edifícios históricos; matam crianças, velhos, mulheres e homens. É isto uma guerra humanitária, como afirmam os que a defendem ? É isto uma acção humanitária como sublinham os que pretendem dar cobertura constitucional á intervenção de Portugal ? Não. Isto é uma guerra de destruição, uma guerra de dominação imperial. Isto é uma guerra onde Portugal está mergulhado por responsabilidade do governo do Partido Socialista. Nas condições em que a NATO está a intervir - contra os seus Estatutos, fora das suas fronteiras, como organização ofensiva - Portugal não tem nenhum dever de solidariedade. Portugal não tem nenhum compromisso com uma organização que, como meridianamente foi afirmado pelos estrategas norte-americanos, está já a testar no terreno o novo figurino que decorrerá de uma futura alteração do tratado constitutivo da NATO, como afirmação da nova ordem mundial, cumprindo a resolução do Senado norte-americano de 30 de Abril de 1998 agora formalizada no "Conselho de Guerra" de ontem, em Washington. Uma NATO a actuar como xerife do mundo ás ordens dos EUA e assessorada pelos governos europeus.

E isto é tanto mais insuportável quanto, simultaneamente - e sem querer forçar paralelismos deslocados – hesita-se e não se acode ao povo de Timor-Leste vítima de uma chacina continuada perpretada, há mais de duas décadas, pela Indonésia, pelas suas Forças Armadas e pelas milícias por si organizadas e armadas. Aqui – como na Turquia, com o povo curdo – já não existem razões humanitárias que justifiquem uma acção firme que permita ao povo de Timor-Leste escolher livremente o seu destino? É a política de dois pesos e duas medidas, que o PCP há muito critica mas que, só agora, alguns, com ar aparentemente sofrido, parecem ter descoberto.

Não defendemos, obviamente, uma qualquer intervenção militar. No Kosovo, no Curdistão ou em Timor-Leste as soluções têm de ser políticas para problemas que são políticos.

O Governo português deve pôr termo ao seu envolvimento na guerra contra a Jugoslávia contribuindo, no quadro da ONU, para uma solução política para o problema do Kosovo, com a sua autonomia e assegurando o retorno pacífico da martirizada população de origem albanesa, no respeito pela soberania e integridade territorial da Jugoslávia e da Sérvia e pelos direitos das minorias nacionais.

Se o fizesse, Portugal prestigiar-se-ia aos olhos dos portugueses e do mundo e teria mais autoridade para exigir igualmente uma intervenção mais determinada da ONU em Timor-Leste que garanta a cessação imediata dos massacres e o desarmamento das milícias e, no plano político, a autodeterminação e a independência do território. Ganhava Portugal e, sobretudo, ganhavam a causa dos povos e da paz. E esta seria a melhor celebração do 25º aniversário do 25 de Abril. 25 de Abril que nos libertou e pôs termo a uma guerra. 25 de Abril que não nos libertou para fazermos novas guerras.

Sr. Presidente da República,
Sr. Presidente da Assembleia da República,
Srs. Deputados,
Srs. Convidados,

Apesar das nuvens e das tempestades que se abatem no horizonte mantemos bem viva a esperança e a certeza nos ideais de Abril. Não partilhamos de uma visão pessimista e catastrofista do País. Mas também não nos demitimos de dar voz aos que criticam os desequilíbrios territoriais, ambientais e sociais crescentes e de contribuirmos, com as nossas propostas, para construir um País melhor, um País e uma sociedade onde recuperemos a grande festa colectiva e solidária de Abril. Este é o único caminho para continuarmos a garantir, ás portas de um novo milénio, a adesão das novas gerações aos ideais de Abril.

Por isso, com Abril afirmamos, neste momento histórico, a necessidade de um novo rumo para a construção europeia que assegure uma Europa dos trabalhadores e dos povos, de cooperação e de paz. Com Abril afirmamos a necessidade de uma viragem á esquerda no País que garanta a construção plena de uma democracia plena. Com Abril afirmamos a necessidade de mais solidariedade, mais justiça social, mais liberdade. Com Abril acreditamos no futuro.

VIVA ABRIL !

Disse.