Intervenção de António Filipe na Assembleia de República

"O acesso às comunicações dos cidadãos só pode acontecer no âmbito da investigação criminal"

Aprova o regime do Sistema de Informações da República Portuguesa
(proposta de lei n.º 345/XII/4.ª)
Aprova o regime de fiscalização da Assembleia da República sobre o Sistema de Informações da República Portuguesa e fixa os limites da atuação dos Serviços que o integram (Sexta alteração à Lei n.º 30/84, de 5 de setembro)
(projeto de lei n.º 997/XII/4.ª)

Sr.ª Presidente,
Sr. Ministro da Presidência e dos Assuntos Parlamentares,
O Sr. Ministro apresentou aqui a proposta de lei, mas não disse uma palavra sobre uma questão decisiva que tem de estar em debate, que é a inconstitucionalidade grosseira daquilo que é proposto.
O que refere expressamente o artigo 34.º da Constituição é que não é permitida qualquer ingerência nas comunicações, salvo no âmbito da investigação criminal. Manifestamente os serviços de informações não atuam no âmbito da investigação criminal. Essa comissão que os senhores aqui propõem, composta por juízes, é um órgão administrativo, nunca é, em caso algum, um órgão jurisdicional. Um juiz, por ser juiz, se for colocado num órgão administrativo, não passa por esse facto a ter uma função jurisdicional. E não somos só nós que dizemos isto, já foi referido publicamente o parecer da Comissão Nacional de Proteção de Dados. Os senhores dirão que não é vinculativo. É verdade, não é vinculativo, vale por si, vale pelo seu conteúdo e o seu conteúdo é extremamente importante e significativo quando a Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD) refere expressamente que, e cito, «A extensão e a intensidade do tratamento de dados pessoais realizado, de dados que revelam diversos aspetos da vida privada, quando não mesmo, porque analisados no seu conjunto, toda a nossa vida privada, implica o reconhecimento da proposta de lei em apreço da possibilidade de uma agressão tal aos direitos à privacidade, à proteção de dados e à liberdade que não se pode falar senão de uma devassa, no sentido jurídico do termo, aparentemente legitimada pela lei mas que viola os pilares do Estado de Direito e de uma sociedade democrática». A CNPD não faz por menos e nós cremos que não é de fazer por menos, porque aquilo com que estamos confrontados com esta proposta de lei é com um gravíssimo atentado às garantias dos cidadãos, constitucionalmente consagradas.
Ora bem, o Sr. Ministro, sobre isto, não disse absolutamente nada. O Sr. Ministro pode dizer que discorda da Constituição — aliás, muitos dirigentes do PSD e membros do Governo têm-no dito. Porém, os senhores discordam mas têm de a cumprir, têm de a respeitar, e esta proposta que aqui nos é apresentada é grosseiramente inconstitucional, e isso não pode deixar de estar presente neste debate.
Nós ainda esperamos que o Governo, se não nesta fase, pelo menos na fase da especialidade, se esta proposta de lei for aprovada, retire esta disposição porque ela, de facto, não tem qualquer cabimento na ordem jurídica portuguesa.
(…)
Sr.ª Presidente,
Antes de apresentar o projeto de lei, gostaria de fazer uma interpelação à Mesa sobre o seguinte: quando este debate foi agendado, o Grupo Parlamentar do PCP já tinha entregue o projeto de lei que está em discussão.
Portanto, segundo as regras aplicáveis, o tempo atribuído ao PCP deveria ser de 10 minutos e não de 6 minutos, como está indicado no quadro eletrónico, pelo que pretendo clarificar esta questão, a fim de saber de quanto tempo disponho para fazer a minha intervenção.
(…)
Sr.ª Presidente,
Srs. Deputados:
O projeto de lei do PCP foi apresentado, neste momento, para discussão como uma resposta a uma questão que para nós é central e que está aqui colocada, que é a de se propor, através de uma proposta de lei, mas tem sido publicamente assumido que resulta de uma negociação entre os partidos da maioria e o Partido Socialista, tal como o Sr. Ministro agora, aqui, deu a entender e que o Partido Socialista confirmará ou não, mas, se assim é, é algo que só temos de lamentar, uma clara violação do artigo 34.º da Constituição. Efetivamente, o facto de o Sr. Ministro nos vir dizer que há muitos países do mundo — porventura, será a maioria — que permitem este tipo de devassas por parte dos serviços de informações não nos tranquiliza absolutamente nada, nem altera rigorosamente em nada a nossa posição.
Se o Sr. Ministro vier aqui apresentar a lista dos países que mantêm a pena de morte na sua ordem jurídica, encontrará, seguramente, muitos países, e nós não nos identificamos com nenhum deles nessa matéria. Estamos seguros daquilo que defendemos!
Aquilo que está aqui é uma clara violação do artigo 34.º da Constituição, que é um direito fundamental.
A Assembleia da República terá poderes de revisão constitucional, mas, enquanto a Constituição não for revista neste ponto, ela tem de ser respeitada. Queria dizer que nos oporemos a qualquer proposta que, em sede de revisão constitucional, venha permitir este tipo de devassa, mas, não tendo havido essa revisão constitucional, a lei ordinária não tem legitimidade para proceder a esta alteração.
O Sr. Ministro vem dizer: «Bem, mas temos mecanismos de fiscalização». Ó Sr. Ministro, nós, sobre isso, apresentamos o outro ponto do nosso projeto de lei. É que, quanto à efetividade da fiscalização dos serviços de informações em Portugal, creio que estamos conversados. É por isso mesmo que o Grupo Parlamentar do PCP propõe a extinção do atual Conselho de Fiscalização e que seja a Assembleia da República, ela própria, e não por interposto Conselho de Fiscalização, a assumir ao mais alto nível a fiscalização dos serviços de informações, porque pensamos que o atual Conselho de Fiscalização dos Serviços de Informações já deu provas bastantes, ao longo de vários anos, da sua inutilidade. E tanto assim é que, durante muitos anos, nem o PS, nem o PSD, nem o CDS, sentiram sequer a necessidade da existência do Conselho de Fiscalização.
Vários anos houve em que ele nem sequer existiu e os senhores não se preocuparam com isso! Agora, voltou a existir, mas continua a dar provas da sua total inutilidade, porque, quando acontece algum escândalo público relacionado com atividades ilícitas por parte dos serviços de informações, o Conselho de Fiscalização sabe pela comunicação social e a sua atuação, na sequência disso, é absolutamente nula.
Portanto, pensamos que, efetivamente, deve haver um mecanismo de fiscalização dos serviços de informações, coisa que, atualmente, na verdade, do nosso ponto de vista, não existe. Mas pensamos que esta questão de permitir o acesso, de permitir a ingerência nas comunicações está para além da existência de mecanismos de fiscalização.
Entendemos que nem com mecanismos de fiscalização essa disposição constitucional é ultrapassável. O acesso às comunicações dos cidadãos só deve ser permitido, do nosso ponto de vista, no âmbito da investigação criminal, perante quem haja indícios da prática de ilícito criminal, inclusivamente, como é óbvio, o crime de terrorismo — se for esse o caso —, mas também outros crimes graves, em que é permitido, em sede de investigação criminal, a ingerência nas comunicações e sob controlo judicial, sob o controlo de um juiz no exercício da sua função jurisdicional e não por um juiz de carreira, nomeado para um órgão administrativo, que é aquilo que os senhores aqui propõem.
Portanto, ainda esperamos que o bom senso prevaleça, sem prejuízo de outros aspetos críticos que constam do texto da proposta de lei relativamente a matéria orgânica, e que teremos oportunidade de discutir em sede de especialidade.
Parece-nos importante que, em defesa das liberdades fundamentais e porque não há combate ao terrorismo que justifique atentados às liberdades públicas — esta, para nós, é uma questão fundamental —, o bom senso prevaleça e que esta disposição não seja mantida no texto da proposta de lei.
(…)
Sr.ª Presidente,
Sr. Deputado Jorge Lacão,
Há uma questão que, creio, devia ser aqui cabalmente esclarecida acerca da posição do Partido Socialista.
O Sr. Deputado referiu-se àqueles que consideram que o acesso a metadados constitui uma forma de ingerência nas comunicações não permitida pela Constituição e disse que é essa a posição do PCP. É, sim, senhor!
Mas, Sr. Deputado, mas não é só a posição do PCP, tem sido essa a posição da jurisprudência portuguesa, tem sido essa a aplicação do Código de Processo Penal, em Portugal, e tem sido essa, sempre, a posição do Partido Socialista quando aqui discutimos essa matéria a propósito do chamado «envelope 9» a propósito da célebre lista de compras do Dr. Jorge Silva Carvalho!
A posição do Partido Socialista foi sempre muito taxativa no sentido de que esse tipo de intromissões eram ingerências não permitidas constitucionalmente.
A minha pergunta é a seguinte: o Partido Socialista mudou de posição nesta matéria e associou-se à posição da direita portuguesa? Sim ou não? É isso que gostaríamos de saber.
(…)

Sr. Presidente,
Srs. Deputados:
Há aqui um consenso, no caso do debate de hoje, do arco da restrição das liberdades e garantias que não conta connosco. Não nos associamos a esse consenso e rejeitamos a leitura de que é preciso liquidar as liberdades para combater o terrorismo. É essa a leitura que tem estado aqui a ser feita e que foi feita de uma forma muitíssimo elucidativa e eloquente pelo Sr. Deputado Telmo Correia.
A questão é que se formos ver o que tem sido feito em nome do combate ao terrorismo desde 2001 para cá veremos que foi criado um campo de concentração em Guantánamo, que, aliás, o Presidente Barack Obama prometeu solenemente que ia fechar dentro de dias, quando, quase há 10 anos, fez essa promessa.
Foram feitos voos secretos da CIA, que usaram e abusaram do território nacional, a que os senhores quiseram fechar os olhos; foram abertas prisões secretas na Europa, o que foi negado a pés juntos e está hoje comprovado que elas existiram; foram cometidas detenções arbitrárias, foi feita legislação, o célebre Patriot Act, que tem sido contundentemente criticado por todas as organizações de defesa dos direitos cívicos nos Estados Unidos.
Ora bem, combateu-se mais eficazmente o terrorismo ou, pelo contrário, apesar dessas medidas securitárias, a ameaça terrorista é uma ameaça cada vez mais poderosa e latente?
Por isso é que recusamos a ideia de que é preciso liquidar as liberdades como forma de combater eficazmente o terrorismo. De uma forma trágica, a vida tem demonstrado que assim não é.
Então, perguntamos: para reforçar os meios de combate ao terrorismo em Portugal é preciso permitir que os Serviços de Informações devassem as comunicações do Deputado Telmo Correia?
Ou que tenham acesso descontrolado às comunicações da Sr.ª Deputada Teresa Leal Coelho, às minhas ou às do Sr. Deputado Jorge Lacão?
É que é isso que está aqui em causa e não reforçar meios de combater o terrorismo. O que está aqui em causa é que, em nome do combate ao terrorismo, se instituam mecanismos que permitam a devassa da vida privada de todo e qualquer cidadão, sem que haja qualquer controlo sobre isso.
Se há vitórias do terrorismo, são as derivas securitárias. Cada deriva securitária, cada restrição às liberdades fundamentais e à democracia são vitórias do terrorismo. Nós queremos combater o terrorismo em nome da democracia, não queremos ceder ao terrorismo liquidando instituições democráticas que devem ser preservadas.

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