Intervenção de

Acesso ao direito e aos tribunais - Intervenção de João Oliveira na AR

Garante o acesso ao direito e aos tribunais revogando o regime jurídico existente

 

Sr. Presidente,
Sr. Secretário de Estado da Justiça,

Muito rapidamente, gostaria de colocar-lhe uma questão.

Para o PCP, o problema central que está hoje em discussão é o da concretização de um direito fundamental previsto na Constituição. A situação que abordamos hoje diz respeito à redução da concretização desse direito a um pequeno universo de portugueses - que são os mais pobres dos pobres -, excluindo uma larga franja de cidadãos com fracos recursos económicos do acesso ao direito e aos tribunais.

A verdade é que o Sr. Secretário de Estado, ainda agora, na sua intervenção, referiu um aumento que a proposta de lei prevê nos montantes a considerar para efeitos de concessão deste tipo de apoios, mas que, em nosso entender, poderão não resolver o problema de fundo. Porque o problema de fundo que se coloca aqui, Sr. Secretário de Estado, é o da transformação da realidade concreta de uma determinada situação e das dificuldades sentidas pelos portugueses em fazer face às despesas com um determinado processo e da aplicação de uma fórmula matemática que por 1 cêntimo pode excluir o requerente desse apoio ou pode remetê-lo para outro tipo de apoio, porque tem 1 cêntimo a mais do que as tabelas que estão aqui definidas.

Portanto, esta tentativa de matematização da análise de questões sociais e económicas poderá, no fim de contas, conduzir à não concretização de um direito fundamental dos cidadãos.

Por outro lado, gostaria de deixar alguns exemplos de problemas que, quanto a nós, constam da proposta de lei ora em debate.

Existem situações de vítimas de tráfego de seres humanos e de exploração para prostituição ou ainda vítimas de violência doméstica que podem não estar em condições de reunir a documentação que é necessária para obter o apoio judiciário. Assim, por uma questão formal e por uma questão de procedimento, estes cidadãos estarão excluídos do acesso à protecção jurídica. É o caso, por exemplo, de um desempregado, cuja situação, naquele momento concreto em que necessita de recorrer ao tribunal, não é compatível de ser apreciada para efeitos de apoio judiciário, porque, no fim de contas, durante o ano, teve outro tipo de rendimentos que o excluem do acesso ao apoio judiciário.

Gostaria, assim, Sr. Secretário de Estado, que pudesse dar uma resposta relativamente à abertura ou não do Governo para discutir estas matérias e para considerar outro tipo de regulamentação para o apoio judiciário e acesso ao direito e aos tribunais.

(...)

Senhor Presidente,
Senhoras e Senhores Deputados,
Senhores membros do Governo

O tema do acesso ao direito e aos tribunais foi já por diversas vezes trazido pelo PCP à discussão da Assembleia da República. A importância desta discussão está por demais identificada e encontra no nosso ordenamento jurídico o tratamento adequado, com dignidade constitucional, consagrado como direito fundamental no artigo 20.º da Constituição.

Ao prever que a ninguém possa ser denegada a justiça por insuficiência de meios económicos, a norma do n.º 1 do artigo 20.º da Constituição exige a necessária concretização legislativa. E esta deve ser a preocupação central da discussão que hoje aqui fazemos: garantir as condições para que a ninguém seja denegada a justiça por insuficiência de meios económicos. Todas as outras questões deverão estar subordinadas a esta preocupação fundamental.

E devemos recordar que foi precisamente a subversão destas prioridades que nos trouxe à situação que hoje vivemos. As alterações introduzidas pela Lei n.º 34/2004 e pela Portaria n.º 1085-A/2004, justificadas então com a necessidade de aumentar o rigor e tornar o regime de apoio judiciário mais criterioso, transformaram-se em factores de efectiva denegação da justiça para uma larga franja de cidadãos de fracos recursos económicos.

As dificuldades que os portugueses enfrentavam para suportar as despesas ou encargos com um processo judicial foram transformadas no singelo produto de uma operação aritmética elementar, em que as despesas com necessidades básicas passaram a ser a incógnita D, os encargos com a habitação a incógnita H e o rendimento do agregado familiar passou a ser considerado num sistema de escalões. Tudo isto se passou a conjugar matematicamente em fórmulas suficientemente compostas com chavetas e parêntesis rectos e curvos, utilizando todas as operações aritméticas. O apuramento da insuficiência económica dos portugueses passou a depender do preenchimento burocrático de um formulário, como se a realidade pudesse ser capturada por variáveis contidas entre chavetas.

Mas esta teimosa realidade não se quis adaptar ao apregoado rigor do novo regime legal. Demorou pouco até se perceber que, com esse regime, era a justiça que ia ficando entre parêntesis e o acesso ao direito e aos tribunais começava a tender para zero. Obviamente só para aqueles cuja condição económica não cabia nas grelhas das tabelas do apoio judiciário.

Por isso urgia mudar o sistema. Já nesta legislatura, com esta maioria do Partido Socialista, o PCP trouxe de novo a discussão do acesso ao direito e aos tribunais à Assembleia da República, tendo apresentado os Projectos de Lei n.º.s 187/X e 188/X. Dessa discussão resultou clara a necessidade de rever o regime de acesso ao direito, sobretudo tendo em conta a importância que assume o recurso aos tribunais para o exercício de direitos numa conjuntura de agravamento das condições de vida e de trabalho para a generalidade dos trabalhadores portugueses.

O Partido Socialista, apesar de reconhecer a necessidade de rever o sistema, optou então por rejeitar as iniciativas do PCP. Na altura - em Maio de 2006 - o argumento de que o Governo tinha em preparação uma Proposta de Lei que previa um sistema "mais célere, mais racional e integrado" foi motivo bastante para o PS adiar a resolução de um problema que continuou a atingir milhares de portugueses.

Entretanto, a situação na justiça agravou-se com a continuação do processo de privatização do notariado, a celebração do Pacto Parlamentar para a Justiça entre PS e PSD e com a apresentação pelo Governo de propostas de revisão do mapa judiciário prevendo o encerramento de tribunais. A revisão do regime de acesso ao direito e aos tribunais é que tardou, apesar das promessas que vinham sendo feitas desde o fim de 2005.

Confrontados que estamos finalmente com a Proposta de Lei do Governo, constatamos que afinal a montanha pariu um rato. Talvez possamos vir a assistir a um alargamento do âmbito de concessão do apoio judiciário, mas não estamos certamente perante a resolução dos problemas de fundo que temos até aqui identificado. Continuaremos perdidos na racionalização matemática de questões sociais em nome de um rigor que estabelece limites matemáticos aos direitos constitucionais.

A Proposta de Lei que hoje temos em discussão insiste assim na prioridade do acessório face ao que é essencial. Insiste numa solução burocrática que transforma decisores em autómatos e que deixa de fora dos tribunais aqueles que, não sendo os mais pobres dos pobres, não dispõem ainda assim dos meios económicos para fazer face às despesas com a justiça.

E temos mais. Os profissionais forenses que participem neste sistema de acesso ao direito poderão ser nomeados para lotes de processos e escalas de prevenção mas deixam de ter direito a uma remuneração para passarem a receber uma compensação pelo seu trabalho, sem direito a reembolso das despesas que eventualmente venham a suportar. Fica a dúvida: estamos perante meras alterações de natureza semântica e organizativa ou o futuro para estes profissionais será mesmo de mais trabalho com menos retribuição?

A tudo isto o PCP propõe uma alternativa (projecto de lei nº 377/X) que não tem a presunção de aprisionar a realidade entre chavetas mas que tem em conta a sua complexidade e dinâmica próprias.

Propomos a devolução ao juiz da competência para a decisão de concessão do apoio judiciário e a possibilidade de este ordenar todas as diligências que entenda necessárias e indispensáveis ao apuramento do rendimento.

Propomos a consideração de situações de presunção de insuficiência económica, identificando, entre outras, as situações dos desempregados, das vítimas de tráfico de seres humanos, de exploração através da prostituição ou de violência doméstica.

Propomos igualmente a isenção de custas em processos do foro laboral para todos os trabalhadores e, em algumas situações, para os funcionários e agentes da Administração Pública.

Propomos ainda a fixação de um prazo objectivo para o pagamento de honorários aos profissionais envolvidos no sistema de acesso ao direito.

Damos ainda cumprimento ao Acórdão n.º 654/2006 do Tribunal Constitucional, restringindo o conceito de agregado familiar para efeitos de consideração dos rendimentos a ponderar.

No PCP, continuamos a entender que uma correcta organização do sistema de acesso ao direito implicaria a criação de um instituto público dotado de meios técnicos e humanos adequados a essa missão. Aliás, perante as conclusões constantes do Relatório n.º 50/06 do Tribunal de Contas, relativo a um processo de auditoria aos sistemas de gestão e controlo do financiamento do acesso ao direito e aos tribunais, temos agora razões para considerar que tal solução significaria mesmo uma melhoria na afectação dos recursos públicos e na eficiência do sistema.

Sem prejuízo de apresentação futura de uma iniciativa nesse sentido, concentramo-nos agora no que entendemos ser prioritário. A prioridade que o PCP define com este Projecto de Lei é garantir um regime de acesso ao direito e aos tribunais que dê verdadeira concretização ao artigo 20.º da Constituição e seja um factor de construção de uma democracia avançada no Portugal do século XXI.

Disse.

 

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