"Abrir perspectivas a um caminho novo"

Entrevista a Leonel Búcaro e Carlos Ruíz, da Frente Farabundo Martí para a Libertação Nacional, El Salvador
Avante Edição N.º 1869, 24-09-2009

A vitória do candidato da Frente Farabundo Martí para a Libertação Nacional nas eleições presidenciais de Março deste ano encerrou um capítulo na história de El Salvador e abriu perspectivas para um caminho novo, de democratização do país, de reconstrução do Estado e de implementação de medidas de combate às injustiças sociais, disseram ao Avante! Leonel Búcaro, deputado do parlamento centro-americano e membro da Comissão Política da FMLN, e Carlos Ruiz, presidente da Câmara Municipal de Soyapango.
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Avante!: A vitória do candidato da Frente Farabundo Martí para a Libertação Nacional nas eleições presidenciais de Março, Mauricio Funes, representa a acumulação de influência social, política e eleitoral por parte do partido?

Leonel Búcaro: É seguramente o resultado de um longo percurso histórico da FMLN, não apenas no plano das lutas sociais travadas, mas também em resultado do trabalho realizado pelos nossos eleitos nos órgãos de poder local. É fruto, ainda, da grande campanha presidencial realizada em 2004 pelo nosso camarada Shafik Handal, a qual foi um passo determinante para as vitórias eleitorais que se seguiram.
Tudo se conjugou para os triunfos alcançados este ano, primeiro nas autárquicas, depois nas presidenciais

Frisaste o trabalho no poder local. O reconhecimento pela população da obra realizada onde a FMLN assumiu responsabilidades governativas teve peso na vitória das presidenciais?

Carlos Ruiz: O desenvolvimento de um país tem as suas raízes e a sua base local. Quando assumimos o governo de um município altamente atrasado e aplicamos as orientações do partido e a sua estratégia; quando temos uma conduta exemplar exercendo cargos públicos para servir o povo e não para nos servirmos a nós próprios; quando criamos infraestruturas e sistemas de apoio social, estamos a contribuir não apenas para a elevação das condições de vida das populações, mas também para que os salvadorenhos acreditem que é possível construir uma vida melhor.
Se, para mais, o fizemos no quadro de uma enorme carência de meios e recursos disponibilizados pela administração central e no contexto de duas crises simultâneas, uma internacional e outra interna, que oprimiam duplamente o nosso povo, então contribuímos para que as pessoas acreditassem nas transformações sociais que poderíamos implementar no governo do país.
Foi isso que aconteceu, indicámos caminhos por onde marchar ao mesmo tempo que materializávamos localmente as nossas propostas, e essa prática abriu perspectivas para um caminho novo e reforçou a confiança do povo na FMLN.
Começámos, em Janeiro, por passar de 58 municípios governados por nós para 96. Os conservadores nunca admitiram a hipótese de perder as presidenciais, todavia os salvadorenhos nunca deixaram de acreditar no sonho histórico de afastar a direita do poder, por isso o triunfo de 15 de Março foi o corolário de uma longa batalha com muitas décadas de luta.
Luta que continua, pois o afastamento da direita não quer dizer que tenhamos conquistado o poder.

Porque é que diz isso se, afinal, a FMLN ganhou as eleições?

Carlos Ruíz: Temos, de facto, um governo novo, mas o poder económico, social e até cultural não se alterou. Estamos no executivo de unidade liderado pelo presidente Funes, contribuímos decisivamente para o seu triunfo e apoia-mo-lo porque se identifica verdadeiramente com o movimento popular e os seus interesses, mas mantemos a nossa própria concepção de transformação social e projecto de sociedade.

Leonel Búcaro: Esta é uma etapa de transição. Com a vitória nas presidenciais de 15 de Março encerrámos um capítulo na história do nosso país e abrimos outro. Não nos podemos esquecer que só com a assinatura dos acordos de paz, em 1992, se iniciou a constituição de instituições democráticas. Por isso a reconstrução do Estado está ainda em curso. Nesse sentido, a concertação com outras forças e sensibilidades no governo é central, mesmo que a FMLN seja um eixo central no governo.
Nas eleições apontámos como objectivo principal retirar o Partido ARENA do governo. Cumprido esse objectivo, podemos avançar para outra etapa, bem mais complexa, que tem a ver com as concepções da justiça ou da economia.
No governo temos os ministérios da Saúde e da Educação. Podemos agir no campo social, mas a condução da economia, por exemplo, está nas mãos de outras forças. Isso não significa que abdicamos do princípio de beneficiar o povo com políticas concretas, pelo contrário. Mas também há que ter em conta que é fundamental manter o processo democratizador.
Acresce que o ARENA, ao fim de 20 anos consecutivos no governo, deixou o país na bancarrota. Assim uma das prioridades é reestruturar o Estado para torná-lo capaz de articular uma política social de acordo com os interesses do povo e dos trabalhadores. Por exemplo, temos propostas concretas de aumento dos fundos para o poder local, ou da gratuitidade do sistema de saúde, ou da doação de uniformes escolares para as crianças, que lhes permitirá ter um par de sapatos, medidas que ao mesmo tempo que respondem a carências sociais evidentes estimulam a nossa economia e projectam uma mudança política efectiva.

Referiste que o ARENA esteve 20 anos no poder. O partido mantém-se forte?

Leonel Búcaro: Claro. Quando o ARENA perde as eleições presidenciais tendo dominado o governo por tantos anos, tenta condicionar no sentido de que a FMLN não assumisse lugares no executivo. Além do mais mantém muitos funcionários em lugares chave.
Por exemplo, ao nível das relações externas, até ao momento o governo de Mauricio Funes não pôde destituir de altos cargos diplomáticos alguns dos homens fieis ao anterior governo, isto porque o ARENA aprovou legislação que os protege. Tal é impensável para qualquer novo governo em qualquer país do mundo. Mas acontece em El Salvador.

E os sectores estratégicos da economia e os serviços públicos, estão privatizados?

Carlos Ruíz: Sim, continuam privatizados. O governo de Mauricio Funes não tem condições económicas para avançar com a reversão de processos de privatização em sectores estruturantes como a rede eléctrica, as telecomunicações e outros. Assim governamos nas condições existentes de controlo desses sectores por parte do capital.

Se se fizesse a reversão das privatizações dos sectores estratégicos poderia ocorrer uma situação semelhante à que ocorreu na Honduras?

Leonel Búcaro: Não creio. Em El Salvador existe um partido forte, organizado. Além do mais a oligarquia não tem em El Salvador a mesma influência no seio das forças armadas que pelo vistos tem nas Honduras. Nesse sector a correlação de forças não lhes é favorável, pelo menos o suficiente para um golpe triunfante.
Depois, as forças armadas salvadorenhas sentem-se usadas, abandonadas pela direita. Os governos do ARENA praticaram políticas salariais miseráveis. Nas casernas, depois do fim do conflito armado, os militares chegaram a dormir no chão.
A oligarquia pode sonhar com um golpe de Estado, mas não tem as mesmas condições que nas Honduras. Pode, sim, lançar uma campanha apelidando o governo de incompetente e boicotando-o por via dos instrumentos que controla, a banca, as telecomunicações, os média.
Também por isso a nossa participação no governo tem em conta a necessidade de ir rompendo o cerco apoiando um governo e um presidente amigo. O nosso projecto não morre com a participação neste governo. É um processo longo que continua, mas acreditamos que com a força do partido e o seu reforço entre o povo salvadorenho podemos construir o rumo da alternativa de esquerda que o país precisa.

Como avaliam o que sucedeu nas Honduras?

Carlos Ruíz: Foi uma reacção da oligarquia mais conservadora associada ao imperialismo, cujo objectivo ultrapassa em muito as Honduras. Há que ter em conta o contexto em que as coisas ocorrem. Nesse sentido, quer o golpe de Estado naquele país quer o acordo entre os EUA e a Colômbia para o estabelecimento de bases militares têm, simultaneamente, um intuito desestabilizador da região e assumem-se como a resposta aos processos democratizadores e de transformação social em curso na América Latina. Procuram reagrupar as suas forças, concertá-las para fazer retroceder os avanços alcançados, recuperar a iniciativa política e reconquistar o domínio sobre os povos do subcontinente. Esses são os planos imperialistas.
Depois da Venezuela iniciar a revolução bolivariana, outros países trilharam caminhos progressistas, com dimensões e características diferenciadas, mas fizeram-no quer no Sul do continente, quer na América Central.
Repara que nas Honduras o processo democratizador e de defesa da soberania nacional dá-se com um presidente que sai das fileiras da direita e que, a dada altura, percebe que com as forças conservadoras não é possível avançar na construção de uma sociedade menos injusta e desigual.

Leonel Búcaro: O que aconteceu nas Honduras foi um plano piloto, no sentido em que o imperialismo pretendeu de uma só vez enviar um sinal claro aos demais governos que lhe façam frente e animar as oligarquias nacionais apresentando-lhes um modelo eficaz para reagirem à perda de influência.
A reacção popular ao golpe de Estado demonstra, por outro lado, uma outra coisa. Existe uma relação dialéctica em tudo isto, porque ao mesmo tempo que o país regrediu tomado de assalto pelas forças mais reaccionárias, o povo hondurenho organizou-se para resistir como nunca tinha acontecido.

Continuam abertas muitas feridas do período da guerra. É um objectivo procurar que se faça justiça sobre os acontecimentos do conflito armado em El Salvador?

Leonel Búcaro: Nesse aspecto há casos simbólicos e amplamente conhecidos no mundo, como a morte das freiras norte-americanas e o assassinato do monsenhor Oscar Romero. Mas também continuam em aberto os assassinatos e os desaparecimentos, inclusive de crianças. O presidente Mauricio Funes está de acordo que se tomem medidas que conduzam ao apuramento da verdade e à reparação das vítimas. Alguns processos têm decorrido, mas este é outro tema sensível e é um dos maiores receios da direita desde que foi arredada do poder.
Não é por acaso que depois das eleições presidenciais o ex-presidente da República [1989-1994] Alfredo Cristiani assumiu a presidência do ARENA. Isso dá-lhe um grau de imunidade.
O governo está a trabalhar para que abertura de processos pelos assassinatos cometidos não seja um pretexto para a propagação de um clima de instabilidade.

Para o Carlos Ruíz é a primeira vez que vem à Festa do Avante!. O que te parece?

É uma iniciativa que permite ao PCP um contacto muito directo com o povo, fazendo da Festa um veículo de transmissão da sua análise sobre o país e o mundo, as suas opiniões e concepções ideológicas, desenvolver o seu nível organizativo e a sua influência social.
A Festa do Avante! permite ainda uma outra coisa ao Partido Comunista Português e às delegações de partidos comunistas e progressistas que aqui vêem oriundos de todos os continentes: a troca de impressões e experiências.
É um exemplo a apreender para, se possível, fazer algo de semelhante nos nossos países.

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