Intervenção de Manuel Loff na Assembleia de República, Sessão Solene Comemorativa do 49.º Aniversário do 25 de Abril de 1974

Não renunciaremos em cada dia que passa ao que se conquistou em Abril

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Senhor Presidente da República, Senhor Presidente da Assembleia da República, Senhor Primeiro-Ministro, Senhores Presidentes do Supremo Tribunal de Justiça, do Tribunal Constitucional e do Supremo Tribunal Administrativo, Senhor Representante dos Capitães de Abril, Senhoras e Senhores convidados, Senhoras e Senhores deputados,

“Libertar Portugal da ditadura, da opressão e do colonialismo representou uma transformação revolucionária e o início de uma viragem histórica da sociedade portuguesa.” É assim que no Preâmbulo da Constituição da República se descreve o que foi o 25 de Abril. Ao contrário da grande maioria dos processos democratizadores que lhe foram contemporâneos, desde a Grécia e a Espanha até à América Latina, a libertação de Portugal em 1974 da longa ditadura fascista de 48 anos foi, não uma transição mais ou menos arrancada a ferros de dentro de uma ditadura em fase degenerativa, mas uma Revolução, exatamente como são descritas as grandes mudanças políticas da modernidade, justamente porque nela se rompeu definitivamente com o passado, se abriu as portas aos anos de maior participação política e social que os portugueses alguma vez viveram e porque dela saiu uma mais arrojadas democracias do mundo, em que, em simultâneo, se rompia com séculos de sangrentas ilusões imperiais e de opressão social e política.

A Revolução portuguesa que hoje aqui comemoramos, contudo, não é feita simplesmente memória. Muito pelo contrário: quando dizemos “25 de Abril sempre!” estamos a dizer que não renunciaremos em cada dia que passa ao que se conquistou em Abril – direitos, liberdades e garantias cívicas que não aceitaremos nunca mais ver restringidas, direitos sociais como os de uma educação, um SNS e uma Segurança Social públicas, que assegurem o bem estar de todos e não apenas de alguns, como continuará a ocorrer se não cumprirmos o que acordámos quando aprovámos a Constituição de 1976. O direito a defender publicamente os nossos direitos enquanto cidadãos e trabalhadores, a nos manifestarmos livremente para o fazer. O direito a defender a paz contra a guerra, hoje como há 50 anos. O direito a dizer, hoje como então, “Fascismo nunca mais!”

Retomar a memória de uma das mais extraordinárias e generosas revoluções da história, retomar a memória da resistência e do que ela permitiu conseguir, tem hoje, em 2023, um papel muito prático: reforça a capacidade de resistência e de exigência de mudança, porque se já foi possível conseguir o que, há 50 anos, a maioria achava ser impossível ou inviável conseguir, significa que se pode voltar a conseguir o que o novo pensamento único dos nossos dias nos quer convencer ser impossível realizar.

Praticamente meio século depois do 25 de Abril e das melhores esperanças que nele depositaram milhões de portugueses, milhões de democratas por todo o mundo que sentiram a nossa Revolução como sua, a democracia está sob ameaça. Em todos os lugares, a começar por Portugal, onde reiteradamente se não cumprem as naturais, justíssimas, expectativas de quem espera que a democracia seja sempre acompanhada de bem estar e de justiça social, de direitos universais à saúde, à educação, à habitação, ao trabalho com direitos e garantias, de salários e pensões dignos, do direito a uma infância feliz longe do espetro da pobreza, a uma velhice com dignidade e qualidade de vida. Sempre que algum ou todos estes direitos se não concretizam nas nossas vidas, alimenta-se a descrença na democracia e esta estará sempre ameaçada. Sempre que o autoritarismo patronal precariza impunemente a vida de quem trabalha, chantageia os trabalhadores para impedir que se sindicalizem, que defendam, que exerçam os seus legítimos direitos, a democracia, mais do que ameaçada, é atacada. Não podemos andar a lamentar a baixa participação eleitoral e fingir não perceber a que esta se deve. Não pode quem tem responsabilidades de governo comemorar o 25 de Abril, a Revolução e a democracia e ao mesmo tempo deixar degradar a condição de vida dos portugueses depois de se terem enterrado incontáveis recursos públicos no apoio aos grandes grupos económicos e financeiros ou a cativar dinheiro do Estado, de todos nós, para lograr as chamadas “contas certas”, as mesmas que nunca estarão certas sem se assegurar condignamente o funcionamento dos serviços públicos de que se faz para todos nós a democracia no dia a dia.

A democracia está há anos ameaçada, de novo, pelo fascismo de cuja sombra nos julgávamos ter libertado por todo o mundo há 80 anos, ou, justamente, há 49 anos em Portugal. É ilusório julgarmos que o assalto da extrema-direita fascista está a fazer ao poder deixa incólume a democracia. O exemplo da luta que os democratas brasileiros tiveram de travar para, graças à extraordinária persistência humana do Presidente Lula da Silva que aqui esteve presente esta manhã, derrotar o que foi a maior ameaça, absolutamente real, contra a democracia brasileira desde o fim da ditadura civil-militar, diz bem dos perigos que a extrema-direita representa. Violência e ameaças sobre adversários políticos, ataque aos direitos sociais e cívicos, assassinato de ativistas. Importa, pois, que quando se celebra a democracia e a liberdade não se desvalorize o significado desta ameaça, trivialize a mentira, a manipulação, o racismo, o branqueamento dos crimes e da violência fascista e colonial do passado, o oportunismo descarado ao fingir defender hoje o que no passado sempre rejeitou.

Permitam-me que me dirija diretamente a todos e todas as cidadãs do meu país e a todas as pessoas que, independentemente da sua nacionalidade, aqui constroem o seu futuro. O 25 de Abril foi feito para todos nós que aqui estamos 49 anos depois. Foi feito pelos militares de Abril cansados de guerra a quem devemos o ato fundador do resgate deste país da ditadura, da guerra e do colonialismo. Foi feito por gerações de resistentes, e os comunistas em primeiro lugar, que deram o melhor de si, e tantas vezes a própria vida, para conseguir liberdade e direitos, uma sociedade justa com os valores que a Constituição de Abril consagrou. O 25 de Abril tem agora de continuar a ser feito por nós, por quem acredita nesses valores que permanecem, sabemo-lo hoje melhor do que nunca, a solução para os problemas estruturais do nosso país. As multidões saem por estes dias à rua para celebrar a Revolução fazem-no com a força inesgotável dos valores de Abril. Fazem-no recordando que não há democracia sem justiça social, exigem respeito pelos direitos dos trabalhadores, das mulheres, dos jovens, de todos independentemente da sua origem étnica e identidade de género, dos reformados que trabalharam para o bem estar das gerações que se lhes seguiram e que hoje têm direito à solidariedade de quem trabalha e ao respeito do Estado. A Grândola de Zeca Afonso, a “terra da fraternidade” onde “o povo é quem mais ordena” tem de ser cada uma das nossas cidades e aldeias de um país verdadeiramente democrático.

Viva o 25 de Abril!

 

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